Sentado no balcão do bar Caneca de Prata, na República, centro de São Paulo, o bancário Marcos, que prefere ser identificado apenas pelo primeiro nome, pediu uma cerveja. Sozinho, foi abordado por um homem negro, forte e com aproximadamente 1,90m de altura, que se aproximou perguntando se poderiam conversar. Entre elogios e uma conversa que fluía naturalmente, Marcos pediu mais uma cerveja. A partir desse momento, suas memórias são vagas até perceber que havia sido vítima do golpe conhecido como “boa noite, Cinderela”, onde a bebida é adulterada com substâncias químicas.
O golpista fez saques, transferências bancárias e compras que Marcos não reconhece, resultando em um prejuízo estimado de R$ 100 mil. Além das perdas financeiras, o impacto psicológico foi significativo, levando Marcos a iniciar um tratamento com medicamentos controlados e desenvolver medo de sair sozinho e de se relacionar com outras pessoas. Eu não consigo dar liberdade nem querer ter liberdade de conversar com uma pessoa que não seja conhecida”, desabafou.
Aumento alarmante da violência
São Paulo, um dos principais destinos da comunidade LGBTQIA+, se prepara para a Parada do Orgulho no próximo domingo (2). No entanto, um estudo do Instituto Pólis sobre violência LGBTfóbica na cidade revela que a metrópole é especialmente perigosa para esse público, principalmente durante a noite e madrugada.
De 2015 a 2023, notificações de violência contra LGBTQIA+ registradas nos serviços de saúde da capital cresceram 970%, com quase 50% relacionadas a violências físicas. Dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP) mostraram um crescimento de 1.424% nos casos entre 2015 e 2022, sendo 57% das ocorrências entre 18h e 6h, principalmente em bares, restaurantes e casas noturnas.
Centro de São Paulo: Foco da violência
Os bairros da República, Bela Vista e Consolação, no centro de São Paulo, concentram os maiores números de registros de agressão a pessoas LGBTQIA+. A pesquisa aponta locais como a praça da República, largo do Arouche, rua Rego Freitas, praça Dom José Gaspar e Anhangabaú como os principais focos de ocorrências. A rua Augusta, no distrito da Bela Vista, também se destaca.
Foi na República que L.C.S., de 36 anos, foi espancado após uma briga na saída de uma casa noturna voltada para a comunidade LGBTQIA+, em 13 de abril. Sua família registrou um boletim de ocorrência após ele ter sumido por uma semana, até ser encontrado por um amigo após receber alta médica do Conjunto Hospitalar do Mandaqui, zona norte de São Paulo. L.C.S. suspeita que tenha sido drogado, pois não tem lembranças daquela noite. A SSP informou que o caso está sob investigação do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP).
Golpe do “Boa Noite, Cinderela”: Um perigo crescente
O corretor de imóveis carioca Guilherme Antônio, 39 anos, também foi vítima do golpe do “boa noite, Cinderela” enquanto comia uma pizza na avenida Vieira de Carvalho, República. Uma mulher pediu ajuda para abrir um sachê, e Guilherme imediatamente sentiu sede após rasgar o plástico com os dentes. A partir desse momento, suas memórias são confusas, lembrando apenas de obedecer aos comandos de um homem que se aproximou quando ele já estava tonto. O golpista fez várias compras com seus cartões de crédito, e Guilherme precisou registrar um boletim de ocorrência para embarcar sem seus documentos. “Pânico, ódio e um pouco de revolta. Eu não volto a São Paulo tão cedo”, disse ele.
Subnotificação e desafios na investigação
Em novembro de 2023, o programador Paulo Soares, de 28 anos, suspeita que foi mais uma vítima do golpe na Funilaria Bixiga, uma casa noturna na Bela Vista. Naquela noite, após consumir várias bebidas, ele foi encontrado desmaiado dentro do banheiro do estabelecimento. No dia seguinte, encontrou um canudo com resquícios de pó branco em sua bermuda, mas não se lembrava de ter usado drogas. Paulo decidiu não registrar o B.O. devido à falta de informações e receio de que a denúncia não seria relevante.
A Polícia Civil investiga quatro outros casos semelhantes na Funilaria Bixiga. Um suspeito foi preso em fevereiro de 2024, mas as investigações continuam. O delegado Percival Alcântara ressaltou a importância de registrar boletins de ocorrência, independente da orientação sexual das vítimas. Rodrigo Faria, coordenador do estudo do Instituto Pólis, destacou que a ausência de uma categorização específica para crimes contra LGBTQIA+ nos boletins de ocorrência dificulta as investigações e a prevenção de novos casos.
Perspectivas e desafios
Embora São Paulo atraia muitas pessoas LGBTQIA+ em busca de melhor atendimento médico, oportunidades de trabalho e acolhimento, a violência ainda é uma preocupação constante. A subnotificação dos casos e o medo de sofrer novas violências ao denunciar dificultam a luta por justiça e segurança. A cidade, embora ofereça oportunidades, precisa intensificar as medidas de proteção e apoio à comunidade LGBTQIA+, garantindo um ambiente seguro e acolhedor para todos.