Arminhas de gel: risco à segurança pública e à saúde preocupa autoridades e especialistas
Especialistas alertam para o perigo das arminhas de gel, que causam lesões oculares graves e aumentam a insegurança urbana. Venda do “brinquedo do momento” já foi proibida em algumas cidades brasileiras.
RIO DE JANEIRO — A popularidade das arminhas de gel, também conhecidas como gel blasters, tem gerado crescente preocupação entre autoridades de saúde, segurança pública e pais em todo o Brasil. Apresentadas como brinquedos aparentemente inofensivos, esses dispositivos têm sido associados a acidentes graves, principalmente envolvendo a visão, além de fomentarem um ambiente de insegurança, especialmente em centros urbanos já marcados pela violência. Especialistas e órgãos reguladores, como a Sociedade Brasileira de Oftalmologia (SBO) e o Inmetro, emitem alertas claros sobre os riscos do uso e comercialização indiscriminada desses artefatos.
O que são as arminhas de gel?
As arminhas de gel são réplicas de armas que utilizam pequenas esferas de água como munição. Quando hidratadas, essas esferas se expandem e se tornam projetis macios, disparados por mecanismos elétricos alimentados por bateria. A distância de alcance pode variar de 5 a 10 metros, e o impacto é suficiente para causar hematomas, inflamações e, principalmente, danos oculares significativos, segundo especialistas da SBO.
Embora sejam promovidas como um brinquedo recreativo para crianças e adolescentes, essas armas não são classificadas oficialmente como brinquedos segundo o Inmetro. Por isso, a recomendação é que o uso seja restrito a maiores de 14 anos, sempre com equipamentos de proteção adequados — o que raramente ocorre na prática.
Lesões oculares e riscos à saúde
A Sociedade Brasileira de Oftalmologia alerta que o impacto direto das esferas de gel pode perfurar o globo ocular, causar descolamento de retina e até levar à perda irreversível da visão. Os especialistas reforçam que o uso sem proteção adequada representa uma ameaça grave à saúde ocular, especialmente para crianças.
Além dos olhos, os disparos das arminhas de gel podem provocar cortes profundos, inflamações e até fraturas em casos de uso em regiões sensíveis do corpo. O problema se agrava diante do cenário de ausência de regulamentação clara, o que dificulta a fiscalização e a responsabilização em casos de acidentes.
A brecha na legislação e a venda ilegal
A legislação brasileira ainda não oferece uma normatização específica para as arminhas de gel, o que tem levado a comercialização em um vácuo legal. A Lei nº 9.437/1997, que institui o Sistema Nacional de Armas (Sinarm), proíbe a venda de simulacros que possam ser confundidos com armas reais — o que inclui réplicas como as de airsoft, que precisam ter ponta laranja. No entanto, as gel blasters ainda estão em uma zona cinzenta.
No Rio de Janeiro, o tema chegou à pauta da Assembleia Legislativa e da Câmara de Vereadores. Ambos os órgãos devem discutir no início de 2025 projetos de lei que visam proibir ou regulamentar a venda e o uso das arminhas de gel no estado.
Tragédias causadas pela confusão com armas reais
O risco de confusão entre arminhas de gel e armas de fogo reais já resultou em tragédias. Um caso emblemático aconteceu em Santa Cruz, Zona Oeste do Rio, onde o policial penal Henry dos Santos Oliveira foi assassinado ao testemunhar um assalto. O agente acreditou que os criminosos estavam armados com gel blasters e hesitou em reagir. No entanto, os criminosos estavam armados de verdade e atiraram, matando o policial.
Esse episódio revela como a circulação dessas réplicas pode gerar consequências fatais. A aparência realista das arminhas de gel, especialmente quando utilizadas sem as devidas marcações obrigatórias, dificulta a distinção por parte da população e de agentes de segurança.
Apreensões e operações policiais
Após o caso do policial penal, as polícias Civil e Militar intensificaram as apreensões desses artefatos. Milhares de arminhas de gel foram confiscadas em operações realizadas no Centro do Rio, Madureira e Volta Redonda. Algumas delas ocorriam em plena véspera de Natal, período em que a venda desses produtos dispara como sugestão de presente.
Em nota, a Polícia Civil afirmou que os objetos apreendidos tinham como destino a comercialização ilegal. Já a PM informou que muitos dos produtos não possuíam nota fiscal, sendo classificados como mercadoria de descaminho ou contrabando.
A opinião da Justiça e o debate jurídico
De acordo com o advogado criminalista Fábio Manoel, a insegurança provocada pela disseminação das arminhas de gel justifica a criação de leis mais rígidas. Ele lembra que, apesar de não terem “potencial lesivo” como armas reais, esses objetos provocam pânico e podem ser utilizados por criminosos para ameaçar ou simular assaltos.
“É indiferente se a arma tem ou não poder destrutivo. A simples presença de algo que se assemelha a uma arma real já basta para gerar medo e desordem social”, diz o jurista.
O Exército Brasileiro, por sua vez, explica que os lançadores de gel não se enquadram como armas de pressão nem apresentam letalidade. No entanto, a preocupação não está apenas na letalidade, mas nos desdobramentos sociais e jurídicos que seu uso pode acarretar.
Cultura armamentista entre crianças
Para o sociólogo Ignacio Cano, coordenador do Laboratório de Análise da Violência (LAV/UERJ), o fenômeno das arminhas de gel reforça uma cultura armamentista entre jovens. Ele alerta para os perigos de normalizar a presença de objetos que imitam armas em ambientes escolares e públicos.
“Essas brincadeiras alimentam a ideia de que portar uma arma é algo comum. Isso é extremamente nocivo, especialmente em um país como o Brasil, onde o número de homicídios por armas de fogo é alarmante”, avalia Cano.
O especialista também aponta que, em comunidades vulneráveis, a presença de réplicas pode gerar abordagens policiais violentas, com consequências trágicas.
Cidades que já proibiram as arminhas de gel
Em resposta à crescente preocupação, cidades como Olinda e Paulista, em Pernambuco, já proibiram oficialmente a comercialização e uso das arminhas de gel. A expectativa é que outras cidades e estados adotem medidas semelhantes em 2025, diante do aumento das ocorrências envolvendo o uso desses artefatos.
O papel das redes sociais na popularização
Vídeos de batalhas urbanas com arminhas de gel viralizaram nas redes sociais ao longo de 2024, especialmente no TikTok, Instagram e YouTube. Jovens encenando “arrastões de brincadeira” em locais públicos têm sido filmados e compartilhados por milhares de usuários.
Casos como o de jovens armados com gel blasters atravessando a movimentada Avenida Brasil, ou ocupando um caminhão da Comlurb para simular uma batalha, chamaram a atenção da opinião pública. Apesar de muitas dessas ações serem vistas como “diversão inocente”, elas representam riscos reais à integridade física e à ordem pública.
Regulamentar é urgente
Diante de todos os fatores apresentados — lesões graves, risco à segurança pública, brechas na legislação e fomento à cultura armamentista — é urgente que o Brasil crie uma regulamentação clara para as arminhas de gel. O objetivo deve ser proteger a população, especialmente crianças e adolescentes, de riscos que estão longe de ser apenas hipotéticos.
Enquanto isso não acontece, cabe aos pais, educadores e autoridades locais manter uma postura vigilante e consciente sobre o uso e comercialização desses artefatos, cujo potencial de causar tragédias já se revelou mais de uma vez.