Em uma decisão importante, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu uma distinção clara entre os crimes de estelionato (artigo 171 do Código Penal) e de obtenção de ganhos fraudulentos em detrimento de um número indeterminado de pessoas, popularmente conhecido como “pirâmide financeira” (artigo 2º, IX, da Lei nº 1.521/1951). No julgamento dos autos de Habeas Corpus nº 464.608/PE, o relator, ministro Nefi Cordeiro, concedeu a ordem para corrigir a tipificação dos fatos imputados ao paciente, que foi inicialmente denunciado pelo crime de estelionato.
Distinção entre Estelionato e Pirâmide Financeira
A principal diferença traçada pelo STJ reside na natureza das vítimas: o estelionato envolve vítimas específicas e individualizadas, enquanto o crime de pirâmide financeira atinge um número indeterminado de pessoas. No estelionato, o bem jurídico protegido é o patrimônio das vítimas identificadas, conforme estabelece o artigo 171 do Código Penal:
“Art. 171. Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa.”
Em contraste, a pirâmide financeira, conforme descrito no artigo 2º, IX, da Lei nº 1.521/1951, visa proteger a economia popular e o patrimônio coletivo, abrangendo vítimas indeterminadas:
“IX – obter ou tentar obter ganhos ilícitos em detrimento do povo ou de número indeterminado de pessoas mediante especulações ou processos fraudulentos (‘bola de neve’, ‘cadeias’, ‘pichardismo’ e quaisquer outros equivalentes); […]
Pena – detenção, de 2 (dois) anos a 10 (dez) anos, e multa.”
Decisão do STJ no Caso de Habeas Corpus nº 464.608/PE
No caso em análise, o STJ decidiu que a captação genérica de clientes vitimados, característica da pirâmide financeira, não se enquadra no tipo penal do estelionato, que exige vítimas específicas. O ministro Nefi Cordeiro destacou que a identificação de algumas vítimas não transforma o crime do artigo 2º, IX, da Lei nº 1.521/51 em estelionato. Esse entendimento é crucial para evitar incoerências jurídicas e garantir a competência correta do juízo, evitando a aplicação de penas inadequadas.
Jurisprudência e Competência
A jurisprudência do STJ reafirma que o crime de pirâmide financeira deve ser julgado pelos Juizados Especiais Criminais, dada a pena máxima abstratamente cominada de dois anos. Esta decisão é coerente com precedentes anteriores, como o julgamento do RHC 132.655-RS, onde o relator, ministro Rogerio Schietti Cruz, destacou a objetividade jurídica distinta entre os dois crimes. Enquanto o estelionato protege o patrimônio de vítimas específicas, o crime contra a economia popular visa a proteção do patrimônio de um número indeterminado de pessoas.
Implicações da Decisão
A decisão do STJ no HC 464.608/PE corrige a tipificação inadequada do crime imputado ao paciente, que inicialmente foi processado por estelionato em um juízo incompetente. Essa correção é essencial para assegurar que os acusados sejam julgados conforme a tipificação correta dos delitos, evitando constrangimentos ilegais e a aplicação de penas mais severas do que as previstas para o crime efetivamente cometido.
Anacronia da Legislação e Novas Tecnologias
Embora a decisão do STJ reforce a distinção entre estelionato e pirâmide financeira, há um debate crescente sobre a adequação da Lei nº 1.521/1951 às novas realidades econômicas, especialmente com o advento dos ativos digitais e das novas tecnologias. Projetos de lei, como os PLs 4.233/2019, 2.512/2021 e 3.706/2021, propõem a criação de tipos penais específicos para pirâmides financeiras e crimes relacionados à negociação de criptoativos. Estes projetos visam atualizar a legislação, garantindo uma resposta mais eficaz às práticas fraudulentas modernas, revogando o inciso IX do artigo 2º da Lei nº 1.521/51.
A decisão do STJ no Habeas Corpus nº 464.608/PE representa um avanço na clareza e coerência jurídica ao diferenciar estelionato e pirâmide financeira, assegurando que os julgamentos sejam realizados pelo juízo competente. Contudo, a evolução das relações econômicas e tecnológicas exige uma constante atualização legislativa para combater eficazmente os crimes financeiros contemporâneos.