O acordo que abortou a insurreição do líder mercenário Yevgeny Prigozhin salva a Rússia de uma possível guerra civil, de uma mudança de regime e do colapso de seu esforço de guerra — cenário próximo da Revolução de 1917, evocado pelo presidente Vladimir Putin na manhã de sábado (24).
Mas o drama na Rússia ainda traz benefícios e vantagens potenciais para a Ucrânia, que busca expulsar as forças russas do sul e do leste do país.
“O moral das tropas ucranianas é muito forte e estamos observando de perto esta situação na Rússia com nossa pipoca”, disse Vitaly Markiv, oficial da guarda nacional ucraniana servindo nas linhas de frente, ao “Financial Times”, no sábado.
No entanto, a ameaça de golpe de Prigozhin veio em momento oportuno para Kiev, cuja contra-ofensiva vinha obtendo pequenos ganhos territoriais desde que começou no início deste mês. A decepção no campo de batalha tinha levantado preocupações sobre a capacidade do exército da Ucrânia de superar posições russas duramente fortificadas.
Até que o motim de Prigozhin expôs a vulnerabilidade de Putin e chamou a atenção para as divisões dentro da máquina militar russa e a possível deslealdade. Autoridades ucranianas disseram que a luta pelo poder na Rússia não trouxe mudanças dramáticas na linha de frente, mas criou oportunidades para explorar a distração e prejudicar o moral de seu inimigo.
“Há progresso em todas as direções”
“Claro que vamos explorar isso ao máximo”, disse Andriy Chernyak, funcionário da diretoria de inteligência militar da Ucrânia. “Vamos usar isso a nosso favor na esfera política, na esfera informativa, militarmente.”
A vice-ministra da Defesa da Ucrânia, Hanna Maliar, disse que as tropas de Kiev “lançaram uma ofensiva em várias direções ao mesmo tempo” no sábado. “Há progresso em todas as direções.”
Também houve relatos não confirmados de que tropas ucranianas cruzaram a ponte Antonivskiy perto de Kherson, no sul da Ucrânia, em território controlado pela Rússia na margem esquerda do rio Dnipro.
Um alto funcionário da União Europeia (UE) disse que a luta interna russa foi a “melhor contra-ofensiva que todos poderíamos esperar. Enquanto isso, a Ucrânia pode avaliar e usar o moral quebrado da Rússia a seu favor”.
O que acontece com grupo Wagner
Se Prigozhin tivesse sustentado sua rebelião, poderia ter forçado o Kremlin a retirar algumas de suas melhores tropas das linhas de frente ucranianas para combater os mercenários endurecidos pela força Wagner. Isso não será mais necessário. Prigozhin está sendo enviado para o exílio em Belarus e suas tropas estão voltando para suas bases. Mas o que acontece no grupo Wagner não está claro.
Os oficiais das forças Wagner que não participaram do motim receberão contratos militares regulares. Mas muitos outros que se revoltaram serão barrados e podem permanecer leais a Prigozhin. Putin pode sentir que ainda precisa manter mais tropas perto de casa se Wagner – ou outras milícias – ainda forem consideradas uma ameaça potencial.
Se o Wagner for dissolvido, isso privaria a Rússia de sua força militar mais eficaz na Ucrânia. Foram os combatentes de Wagner que travaram grande parte da luta pesada em Bakhmut, no leste da Ucrânia, o único ganho territorial significativo da Rússia desde julho.
“Wagner foi a única força bem-sucedida da invasão russa por mais de um ano”, disse Andriy Zagorodnyuk, ex-ministro da Defesa ucraniano. “E seu sucesso foi muito limitado, focado em pequenas cidades, e suas táticas foram bárbaras até para o pessoal de Wagner. Mas eles pelo menos conseguiram alguma coisa. O exército russo não poderia.”
O fim do grupo Wagner e o exílio de Prigozhin em Belarus também acabariam com as críticas à corrupção, incompetência e burocracia nas forças armadas da Rússia, diminuindo a pressão sobre o estabelecimento militar para lidar com suas maiores fraquezas, disse Zagorodnyuk.
“Portanto, as chances de mudança no sistema militar russo são quase nulas.”
Rob Lee, membro sênior do Instituto de Pesquisa de Política Externa dos Estados Unidos, duvida que a marginalização do exército de Prigozhin teria muito impacto. Os mercenários já haviam se retirado das operações ucranianas e são uma força ofensiva, quando o exército russo está agora em modo defensivo e com desempenho relativamente bom.
Mas Moscou pode usar a rebelião de Wagner para explicar perdas futuras. “Os militares russos quase certamente colocarão a culpa de qualquer perda de território esta semana na rebelião da Wagner”, disse.
Ainda assim, a captura por Prigozhin de um centro de comando em Rostov-on-Don sem resistência aparente das tropas russas, ou o fato de suas forças terem avançado sem impedimentos por várias centenas de quilômetros em direção a Moscou em apenas um dia também levantarão questões sobre a coesão da força russa e a fidelidade de partes do exército.
“Este é um exército de milícias e isso está se tornando cada vez mais evidente”, disse Omar Ashour, professor de estudos militares do Doha Institute. “Isso torna a unidade de comando muito difícil.”
Por fim, existe a possibilidade de que a turbulência do fim de semana prejudique o apoio à guerra da Rússia tanto na linha de frente quanto entre os civis. Prigozhin, que tem considerável influência por meio de seus canais no Telegram, perfurou duas das narrativas de Putin com sua rebelião.
Na sexta-feira (23), ele alegou que a Rússia havia ido à guerra por uma mentira, desafiando diretamente a justificativa de Putin para a invasão como uma missão para proteger os falantes de russo. E no sábado ele mostrou que o poder de Putin era mais frágil do que se pensava.
Reação caótica do Estado russo
“A grande consequência é que a imagem do sistema estável não existe mais, mesmo que o golpe não seja bem-sucedido”, disse Mariia Zolkina, da Fundação de Iniciativas Democráticas, instituição de estudos em Kiev.
“A reação caótica do Estado russo mostra a real fragilidade de um sistema autoritário. Putin se tornou refém de seu próprio jogo.”