“Se tem alguém com legitimidade para falar, é ele. Não tem ninguém mais qualificado para saber o sentido e o objetivo de cada uma das suas falas”, afirma.
Questionado sobre se algumas declarações de Lula atrapalham, com repercussões negativas sobre expectativas, câmbio e juros, diz: “Jamais. O presidente Lula sempre é muito importante de ser escutado”.
Leia abaixo a entrevista:
O sr. conversou com Lula após sua aprovação no Senado? Ele fez alguma recomendação?
Não tivemos reunião. Até porque ele estava na Argentina para o tema do Mercosul. Não tive oportunidade de conversar com o presidente desde a minha aprovação. Mesmo antes, em nenhum momento chegou a falar em qualquer coisa relativa à minha atuação. Só fez algumas brincadeiras sobre a minha saída.
Eu sempre brinco que o Fernando [Haddad] queria me mandar embora porque não me aguentava mais na Fazenda. Estava aguardando a primeira oportunidade.
Recentemente, o presidente da Câmara, Arthur Lira, chegou a sugerir que o sr. ficasse no lugar de Haddad, não?
Vi isso pela imprensa. Nunca cheguei a falar isso com o presidente. E o presidente Arthur Lira tem sido sempre um grande parceiro. Me trata melhor do que eu mereço, mas eu vi isso pela imprensa também.
No Banco Central, como o sr. vai lidar com a influência política? Vai ser um ponto de equilíbrio às pressões de Lula ou um representante da voz do presidente?
Tem uma simbologia no fato de o presidente ter escolhido a pessoa que é provavelmente a que tem mais diálogo e interlocução com a diretoria do Banco Central e, em especial, com Roberto Campos. Já na eleição, muito do meu papel era o de tentar fazer uma tradução. Tem um idioma próprio, que é o do mercado financeiro, e tem um idioma diferente da política. Não é a mesma linguagem. Eu tive esse privilégio de transitar um pouco pelos dois e acho que boa parte do meu trabalho era tentar reduzir ruídos e estabelecer uma comunicação mais tranquila. Acho que o meu papel passa um pouco por aí. Agora, entre o Banco Central e o governo e também o Legislativo e a sociedade.
A sua indicação veio depois de um período de críticas pesadas de Lula à política de juros e ao presidente do Banco Central. Como o sr. se comportará no momento em que o presidente fizer uma cobrança desse tipo?
Até o Roberto [Campos] respondeu sobre isso nesse sentido. E eu, quando dei entrevista no passado, falei. O presidente tem liberdade e legitimidade para falar sobre o que ele quiser. De todos nós que também estamos dando opinião sobre o que queremos, ele é o único que dá opinião tendo 60 milhões de votos. Se tem alguém com legitimidade para falar, é ele. O próprio Roberto [Campos], quando perguntado, também respondeu isso: o presidente tem toda a legitimidade para falar sobre o que quiser. E não só pelos votos, mas é o terceiro mandato. É um político experimentado, que conhece a economia, porque ele vivenciou. Ele pode falar com autoridade sobre o tema.
Na sua opinião, quais são os efeitos dessas falas dele?
Acho que ele consegue colocar o debate público, que é um pouco a função mesmo e o desejo do presidente, de colocar o debate público. Acho que essa é a relevância de estar fazendo isso. E ele tem isso como ninguém. Eu, que nunca ganhei eleição nem para síndico de prédio, e a única que eu disputei, no centro acadêmico, perdi para o Guilherme Mello [secretário de Política Econômica da Fazenda], sou a última pessoa que vai saber dar qualquer opinião sobre a forma e o que se deve colocar objetivamente no debate. Não tem ninguém mais qualificado do que ele para saber o sentido e o objetivo de cada uma das suas falas. Tenho certeza de que ele está consciente disso.
Temos visto nas últimas semanas uma melhora do ambiente, com dólar abaixo de R$ 5, recuperação na bolsa, inflação em queda, mas não temos ainda o arcabouço fiscal aprovado nem as garantias de que virão as receitas que o governo espera para fechar as contas. A que o sr. atribui essa melhora no ambiente? É o correr do tempo ou o fato de Lula ter reduzido um pouco a pressão?
Acho que tem uma questão estrutural e outra conjuntural. Na estrutural, eu acho que o Brasil hoje reúne vantagens comparativas em relação aos seus pares de outros países para se apresentar como um caso de eleição para investimento, tanto investidores domésticos quanto internacionais.
Temos um cenário internacional mais desafiador e complexo do que nos últimos, porque há o que estamos chamando de reversão ou interrupção da flexibilização monetária, que o foi período em que os bancos centrais das principais economias do mundo tiveram a sua política monetária bastante flexível, com taxas de juros negativas e comprando geralmente títulos de dívida ou equity para sustentar o preço daqueles ativos. Ao fazer essa reversão, essa elevação nas economias centrais, começam a ser reeditados problemas e estrangulamentos que pareciam ter sido afastados nos últimos anos, como estamos vendo muitos dos nossos pares, países emergentes e alguns vizinhos voltando a sofrer crise de balanço de pagamentos, que era algo muito tradicional na história de países emergentes.
O Brasil não passa por esse mesmo problema, até por uma herança positiva de governos anteriores que começam no próprio governo Lula. É o caso das reservas internacionais que o Brasil tem. Também não há ameaça do ponto de vista de elevação da taxa de juros de provocar algum tipo de risco sistêmico no sistema financeiro como vimos nas economias centrais.
Já do ponto de vista conjuntural, acho que existia um ceticismo que foi sendo vencido gradativamente com uma série de medidas. Primeiro, mesmo antes de começar o governo, com a PEC da Transição, que foi garantida pelo Legislativo, a gente garante não só as medidas e recursos necessários para o programa de governo do presidente Lula, mas também para o funcionamento básico do Estado brasileiro. Depois, logo em 12 de janeiro, o ministro Haddad faz um anúncio de medidas que são quase de conformidade do ponto de vista tributário, mas que têm um efeito arrecadatório e que visavam justamente reduzir o déficit primário do PIB deste ano. Foi recebido com legítimo ceticismo, mas hoje boa parte das projeções já consideram esse déficit em torno de 1% porque foi uma sucessão de vitórias sendo colocadas. E acho que é normal, conforme vai se concretizando.
Então, desde a tributação dos combustíveis, o arcabouço fiscal como saiu desenhado. E hoje, a reforma tributária, que depois de 30 anos está correndo o risco de ser aprovada. Acho que temos uma série de medidas que foram sendo tomadas e foram endereçando essa lógica. E isso foi se refletindo em projeções de resultado fiscal mais favorável, em novo patamar de câmbio, em taxas de juros futuras que vêm cedendo, em projeções de crescimento melhores.
E ajuda se o Lula falar menos sobre economia?
Jamais. O presidente Lula sempre é muito importante ser escutado. É o presidente da República, líder com 60 milhões de votos.
E a presidência do Banco Central? Tem uma expectativa de que o sr. assuma no futuro?
É ocupada pelo Roberto Campos Neto, com quem eu vou ter esse privilégio de poder trabalhar. Isso é muito bom para mim.
O presidente falou recentemente que quando o Roberto Campos Neto deixasse o cargo ele gostaria de avaliar o que significa o BC independente. Como o sr. vê a autonomia?
A senadora Tereza Cristina me fez essa pergunta. Eu passo um pouco para o que estávamos comentando sobre tradução. Às vezes, a gente precisa explicar bem o que significa a autonomia do Banco Central. Talvez possa haver alguma confusão. Às vezes, as pessoas ficam com uma sensação de que é uma autonomia do processo democrático. É uma autarquia, como várias outras, que tem uma autonomia técnica e operacional.
O destino econômico do país, é óbvio que ele é decidido nas urnas. Basta ver o quanto o debate econômico ocupa as disputas eleitorais. Agora tivemos um caso claro, ou seja, o Estado, através de seus ministros que foram indicados por um presidente eleito discutiram, por exemplo, um dos objetivos que é transferido ao Banco Central. Foi determinado. Agora, o BC tem uma autonomia técnica e operacional para perseguir esses objetivos. O próprio presidente Lula fala: os meus presidentes de Banco Central tinham essa independência e essa autonomia.
O sr. vai participar da próxima reunião do Copom. Obviamente, não vai nos dizer qual vai ser o seu voto, mas como o sr. vê as condições de pressão de inflação para redução da Selic no curto prazo?
Na economia, em geral, a gente está sempre mais interpretando a interpretação dos outros e menos o que a gente realmente pensa. Em especial na posição em que eu estou, de quem ainda não tomou posse e de que qualquer posição que eu fale pode gerar perturbação no mercado, por isso os diretores do Copom só se manifestam através do Copom, o que eu acho que dá para ressaltarmos é o que está no preço hoje do mercado. Ou seja, o que são as apostas que o mercado está fazendo sobre a curva de juros futura. A gente assiste ao cenário que como bem falou o Roberto, já é uma redução de juros, porque a redução da taxa de juros futura já promove uma referência de juros futura para uma série de financiamentos, de linhas de crédito mais baixo.
Como o sr. vê algumas medidas que o mercado tratou como retrocesso, como a questão do marco do saneamento, da revisão da privatização da Eletrobras e reforma trabalhista? Como vê essas sinalizações do governo no seu trabalho futuro de acompanhar as expectativas para decidir?
Para mim, talvez seja mais fácil falar a partir do passado, do que eu vivenciei. Eu vou usar como exemplo o arcabouço fiscal. É comum ver colegas na academia, na política e no mercado, muitas vezes com uma opinião sobre o que era o que ele imagina que seria o melhor na sua concepção. E o que o arcabouço é? Por que o ministro Haddad insistiu que ele fosse construído nesse rito de que a gente vai passando pelas diversas áreas, pelo Legislativo? São processos de construção de consenso e de compreensão.
Eu acho que o arcabouço é uma boa fotografia sobre a composição de forças eleita no ano passado. Então, eu acho que isso passa com todos esses outros pontos. Vai haver propostas, que vão ser negociadas e discutidas com essa composição de forças. É normal fazer isso, inclusive, até os comunicados do BC sempre vêm fazendo esse reconhecimento e atualização a partir dos passos que vão avançando. Quando você está do lado de lá, é normal ser mais receoso. Há teorias que ganharam até prêmio Nobel sobre isso, porque as posições dos investidores tendem a ser um pouco mais cautelosas. É normal o ceticismo, mas conforme se vai gerando um processo e sendo tomadas medidas bem recebidas, vai se ganhando credibilidade e gerando menos volatilidade e sinalizando para um cenário mais favorável à frente.
De novo, sobre o arcabouço, muita gente vê o governo muito otimista com a arrecadação. Nada está garantido, que vai ter a receita neste ano e no próximo para fechar as contas na trajetória de dívida pública que o governo está esperando. Como o sr. vê essas críticas? O arcabouço depende de mais arrecadação ou crescimento, que não sabemos qual será.
Talvez, voltando ao tema das nomenclaturas, vale a pena discutir. Muito da crítica foi a de que estaria pouco voltada para o corte de gasto e mais para o aumento de arrecadação. Mas, em grande medida, o que está sendo chamado de aumento de arrecadação é corte de gasto tributário. Então, precisamos tomar cuidado para não dizer que corte de gasto é só quando eu corto no Bolsa Família, por exemplo. E não quando eu corto em um programa que dá recursos porque é um gasto tributário. Gasto é tudo gasto. Seja porque eu renunciei ou porque eu estou desembolsando.
Essa lógica do gasto tributário deveria ser tratada também como um corte de gasto. O programa está muito calcado nisso. São duas coisas: é o slogan que elegeu o presidente Lula, de colocar o superrico no imposto e o pobre no Orçamento, juntamente com a ideia de que a democracia é um valor superior. O que tem ajudado muito a agenda econômica é o fato de que existe uma disposição de fazer esse debate à luz do sol. O arcabouço fiscal não quer impor um modelo de sociedade. Ele simplesmente tem lá “checks and balances”. E a cada discussão sobre gasto tributário, a gente apresenta e faz a discussão para entender se faz sentido manter aquele esforço fiscal.
Além da reforma tributária, que é um projeto que vem de muitos anos, qual outro grande projeto do interesse da Fazenda ou do BC, para que os juros possam cair, seria primordial o governo Lula levar a cabo?
No segundo semestre, passada essa agenda tão relevante, eu acho que tem dois enfrentamentos. São duas mudanças complexas que ainda temos de entender como vamos enfrentar, e o Brasil tem chance de ter protagonismo. Existe uma mudança social muito relevante, ou seja, as relações de trabalho mudaram. Elas foram aceleradas, e isso impõe que pensar em uma nova rede de proteção social envolve que não vai ser possível, me parece, reproduzir o que foi feito na segunda metade do século 20, de uma sociedade industrial, onde as pessoas ficavam mais de 30 anos no mesmo emprego, com uma jornada de trabalho bem conhecida.
Essas novas relações de trabalho impõem repensar como construir uma rede de proteção social e repensar como o Estado vai financiar isso, tanto na arrecadação quanto no gasto. E o segundo desafio a ser enfrentado é o da transição ecológica. Cada vez mais, nos programas, sejam da arrecadação ou do gasto, precisamos pensar na questão da sustentabilidade ambiental. Ou seja, é social, econômica e ambiental. Não vai ser simplesmente pensar em geração de emprego e crescimento maior, isso também é muito importante, mas a qualidade e como isso está dentro da transição ecológica e social.
Formado em ciências econômicas e mestre em economia política pela PUC-SP, atuou na campanha de Lula em 2022 e assumiu a Secretaria-Executiva do Ministério da Fazenda com Fernando Haddad. Antes, foi chefe da assessoria econômica da Secretaria de Transportes Metropolitanos do Estado de São Paulo e presidente do Banco Fator.
Gabriel Galípolo, novo diretor de política monetária do Banco Central — Foto: Pedro França/Agência Senado