Em 2019, os arquitetos Marcelo Falcão e Pedro Ichimaru deram início a Somauma – coletivo formado ainda pelo arquiteto Vitor Penha e pelo engenheiro Nilton Vargas – focada em desenvolver projetos de retrofit imobiliário no Centro de São Paulo. Desde então, dois empreendimentos já foram entregues: RBS 700 e GAL 703, prédios comerciais convertidos em moradia. Em setembro, sai do forno o terceiro projeto: o Edifício Virgínia, antiga propriedade da família Matarazzo, que ganhará 121 apartamentos, restaurante no terraço e espaço gastrocultural no térreo. “Já temos cinco vezes mais pessoas interessadas já cadastradas do que unidades para vender”, comemora Falcão. Veja a seguir a opinião do grupo sobre os desafios e as oportunidades desse nicho.
Qual o principal desafio do retrofit?
Marcelo Falcão — Nossa principal dificuldade é vender a ideia aos financiadores. O acesso ao capital é fundamental aos pequeno e médio empreendedores do retrofit imobiliário – até porque o grande incorporador não se interessa por esse nicho pela falta de escala.
Mas o capital está concentrado fisicamente em um perímetro pequeno da cidade e não quer sair da bolha da Faria Lima e da Juscelino Kubitschek para apostar no Centro. Vender no Itaim tem risco reduzido, então, eles preferem fazer o óbvio: ficar na zona de conforto.
Qual o risco dos imóveis retrofitados no Centro de São Paulo ficarem caros e inacessíveis, como tem acontecido nos eixos de mobilidade?
Pedro Ichimaru — Acho que o risco sempre existe. O debate é se o poder público consegue controlar o valor. O problema está no financiamento: para quem se dará o recurso alocado? Esse é o caminho para que o Centro não passe pelo mesmo problema. Outro debate é o financiamento público, subsidiado para habitações de interesse social ou de mercado popular. E é preciso melhorar a fiscalização sobre esses projetos para impedir a venda a pessoas jurídicas.
Falcão — A locação social pode ser parte da solução, garantindo que pessoas de menor poder aquisitivo tenham acesso aos imóveis. Destinaremos algumas unidades do Edifício Virgínia para testar esse modelo. Outra ideia é o financiamento dos projetos com capital de filantropia. É preciso criar um modelo financeiro e de real estate que pare em pé e, ao mesmo tempo, garanta habitação social e popular no Centro.
Que avaliação vocês fazem do programa Requalifica Centro?
Falcão — Ele é bom: pela primeira vez, vemos o poder público efetivamente interessado no assunto; a iniciativa privada e grandes fundos injetando capital de maneira massiva; e os criativos fazendo a coisa acontecer. Mas deveria ser expandido a toda a cidade. São Paulo tem vários “centros”, e a problemática é a mesma.
Como avaliam a questão da segurança no Centro de São Paulo hoje?
Falcão — A segurança é composta por duas coisas: a ocupação do Centro e o poder público. As pessoas precisam vir, frequentar, consumir na região, porque isso a torna mais segura. Gangues de bicicleta existem em outros bairros da cidade também. Acho que há uma crítica negativa muito forte sobre o Centro, sobretudo recentemente.
Além disso, a prefeitura tem investido em mais policiamento e infraestrutura na região, com câmeras e iluminação pública, aumentando o reconhecimento desses furtos.
O Virgínia terá 121 apartamentos de 26 a 181 metros quadrados — Foto: SOMAUMA/DIVULGAÇÃO
O retrofit imobiliário é essencial para a regeneração das cidades?
Ichimaru — Sim, isso está comprovado. Grandes cidades em todo o mundo foram alavancadas por conta dessa regeneração provocada pelo retrofit. Há um grande debate a ser feito sobre como preservar a heterogeneidade, mas são exemplos bem-sucedidos de como reencontrar identidades e reconstruir uma dinâmica urbana e econômica dos centros históricos das cidades.
Falcão — Mas não adianta só o incentivo do poder público e a iniciativa privada injetar dinheiro nos projetos: é preciso gerar curiosidade e apropriação da cidade. No espaço do Virgínia, fizemos uma mostra de design por três meses e recebemos quase 20 mil pessoas. Tem muitos estandes de vendas com investimentos de R$ 2 milhões que não consegue atrair tanta gente.
Qual o perfil do comprador do retrofit?
Falcão — É uma turma que tem um novo comportamento de consumo: questionam o que comem, vestem e onde moram.
Vitor Penha — É um alinhamento mais de valores do que demográfico. São pessoas que estão convencidas a morar em uma ideia, em um propósito, não só em um imóvel. E estão dispostas a se adaptar a esse novo formato.
Projeto RBS 700, nos Campos Elíseos, região central da capital paulista — Foto: SOMAUMA/DIVULGAÇÃO
Do ponto de vista do projeto de arquitetura, qual é o desafio?
Penha — O retrofit é um produto imobiliário que deixa bem clara a diferença entre os conceitos de ‘beleza’ e do ‘belo’: o primeiro satisfaz o olhar, é estético. O ‘belo’ trabalha com significado. É uma experiência mais sensorial, baseada nos pilares da sustentabilidade construtiva, do diálogo com o prédio e seu entorno e no bem-estar das pessoas.
Do ponto de vista do projeto, é muito mais difícil do que um empreendimento criado do zero. Dá muito mais trabalho, seja pelas adaptações estruturais ou pela legislação envolvida. Muitas vezes, precisamos trabalhar para preservar um aspecto imperfeito existente, mas que faz parte do projeto original. É um novo paradigma, e a pessoa que compra um imóvel desse tipo precisa aceitar isso.
Quais valores suportam o retrofit?
Nilton Vargas — A sustentabilidade, a regeneração urbana e a economia circular. Não basta o “story telling’. É preciso ir além e recuperar a vida que já existia ali nos edifícios e em seus entornos. No processo construtivo, buscar impactar toda a cadeia produtiva por trás de cada produto.
O empresário investidor deve entender que o edifício mais “verde” é aquele já construído. O retrofit é ESG na veia e, do ponto de vista do negócio, existe uma demanda grande por este tipo de produto no mercado. Nossa ideia é aproveitar este parque imobiliário que já foi construído e está subutilizado para gerar oportunidades, inclusive com lojas e curadoria dos espaços, dentro de uma rentabilidade adequada. No fundo, nossa empresa também quer ter sustentabilidade financeira.
Piscina no terraço do GAL 703, na Vila Buarque, com entrega prevista para julho deste ano — Foto: SOMAUMA / DIVULGAÇÃO
Quais os diferenciais do Edifício Virgínia e o que vem em 2023?
Falcão — O Virgínia terá 121 apartamentos, com metragens entre 26 e 181 metros quadrados. No térreo, um espaço cultural. No rooftop, um restaurante, aberto ao público e com vista para a cidade.
Mesmo antes do lançamento, já temos um cadastro de pessoas interessada que é cinco vezes maior do que o número de unidades. E 25 delas já fizeram pré-reserva sem nem saber o preço final do apartamento.
Para o segundo semestre, temos três prédios já encaminhados e outro em negociação, somando cerca de 800 unidades residenciais, todos no Centro expandido de São Paulo, prédios comerciais que serão convertidos. Não temos um nicho: o Virgínia tem um perfil médio-alto, mas não queremos fazer somente esse tipo de projeto.
Ichimaru — Até por uma característica do próprio Centro: seu valor hoje e para o futuro está na heterogeneidade da população, o que faz a região tão interessante. Fazer projetos para um só público é um equívoco e uma restrição imensa de oportunidade.