Na qualidade de intelectual combativa e polêmica, a filósofa Hannah Arendt não se expressou apenas no campo da teoria política, esfera temática pela qual ela é mais conhecida. Se seus escritos e posições políticas, orientados por uma tendência de caráter liberal consciente e argumentativa, enfrentaram desde o stalinismo cruel até o nazismo indecente, fórmula política da força, Hannah Arendt também escreveu poemas ao longo de sua vida. Apesar de constituir uma produção menos frequente, a poesia também participou das inquietações da filósofa, que escrevia versos em cartas, diários e cadernos de anotação.
Tendo nascido na Alemanha (1906) e falecido nos EUA (1975), a filósofa viveu e testemunhou grande parte do século XX e se propôs como pensadora de seu próprio tempo. A façanha que teve que enfrentar para se situar como uma das maiores teóricas da política do século XX não foi fácil. Pois não só teve que combater o nazismo na teoria, mas também na prática, pois era judia no tempo da perseguição aos judeus mais aviltante. Além do mais, escolheu estudar filosofia, terreno que, na época, não era habitual para mulheres. E, ainda por cima, escreveu sobre teoria política na qualidade de filósofa independente, campo em que as mulheres não tinham participação efetiva na prática, e muito menos uma tradição de pensamento teórico político de constituição feminina.
Mas, nos intervalos de sua produção teórica, Hannah Arendt também escreveu poemas. Com o título “Também eu danço”, a editora Relicário acaba de lançar a poesia completa da filósofa em edição bilíngue. A filósofa escreveu 71 poemas ao longo da vida, entre 1924 e 1961. A tradução da língua alemã para a língua portuguesa, sob trabalho de Daniel Arelli, ressalta um caráter mais conservador nas formas escolhidas pela autora para construir os poemas. De fato, um certo lirismo com rima e métrica tradicional é basicamente a estrutura do método poético da filósofa.
Em um poema intitulado “Canção noturna”, podemos sintetizar as escolhas formais e temáticas de Hannah Arendt: “Ela fala em um só tom / e tem uma só mensagem. / Pouco importa o quanto ousamos, / mostra nossa mesma imagem”. A filósofa foi influenciada, certamente, por aquela tradição alemã da poesia que passa por Goethe, Rilke e Heine. E seus poemas não escondem um endereçamento ou homenagem para certas figuras importantes da tradição do pensamento ocidental: Heidegger, Walter Benjamin, Günther Anders, por exemplo.
O leitor da poesia completa de Hannah Arendt é assaltado, sem dúvida, por uma tentação própria de investigação intelectual. É quase impossível não tentar fazer associações entre os poemas e a produção teórica política da autora. E, nesse caso, caberia saber se obras como “As origens do totalitarismo”, “Sobre a revolução” ou “Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal”, textos clássicos que a filósofa escreveu para entender os fenômenos políticos que testemunhou e vivenciou, têm uma reverberação em formulação artística, no caso a poesia, no conjunto dos poemas que elaborou ao longo de sua vida.
A filosofia e a poesia, com efeito, utilizam instrumentos da língua diferentes. Enquanto a filosofia, em organização expositiva, trabalha com conceitos, argumentos e a lógica da ordem das razões, a poesia opera com imagens, ritmos, sonoridades e figuras de linguagem.
Mas o fato é que a produção poética de Hannah Arendt não tem, efetivamente, ligação com seu pensamento político teórico. Ela, na esfera da poesia, parece se preocupar com temas mais ligados à expressão de sentimentos, imagens de construção de sua própria personalidade e o estatuto particular do fazer poético.
Em um dos poemas do livro, sem título, podemos perceber os sentimentos como tema próprio: “Em cada mulher eu te ignorei / em cada vulto, em vão, te nomeei / em cada além só a ti senti / em cada calma com minha mão tremi”.
No poema “Sonho”, por outro lado, é a filósofa em balanço existencial o que vem à tona: “Pés flutuando em brilho patético. / Eu mesma, / também eu danço / livre do peso / no escuro, no imenso”.
Dois versos de um dos poemas sem título, no entanto, nos assombram pela perspicácia da filósofa que se redobra em poeta. Os versos lapidares e frutos do incômodo de poeta que se propõe entender o modo pelo qual a poesia constrói sua forma na estrutura da linguagem são simples, mas denunciam a poesia que pensa a si mesma como formato literário: “O dizer da poesia / é lugar, não lar”.
Tais versos, encontrados ao meio do poema, mostram que para Hannah Arendt o fazer poético é um espaço diferenciado de proposição da expressão de ideias e isso não significa, de forma alguma, que seja um formato aconchegante e seguro para elaboração intelectual. No balanço geral da qualidade dos poemas da bem-sucedida filósofa política da orquestração liberal, se não encontramos pistas que conectam conceitos filosóficos com imagens elaboradas pelas figuras de linguagem, encontramos uma faceta artística na pensadora que muitas vezes desafiou o status do entendimento simplório dos acontecimentos políticos do século XX.
Também eu danço
Hannah Arendt, Trad.: Daniel Arelli. Relicário. 228 págs., R$ 69,90
Rodrigo Suzuki Cintra é pós-doutor pela Universidade de Coimbra, Portugal, criador do projeto de cultura geral “Canal Cult” (apoia.se/canalcult)