É raro que nas recomendações semestrais de Martin Wolf apareçam, juntos, dois livros sobre o mesmo tema. O que dizer, então, se, além disto, também tiverem merecido destaque pelo próprio “Financial Times” e por Bill Gates?
Os títulos — “Primeiro as melhores coisas” e “Construindo o amanhã” (em tradução livre de “Best Things First” e “Building Tomorrow”) — nem parecem próximos. Mas os longos subtítulos indicam idêntica ambição: propor um guia para evitar que seja trágico o próximo degrau do Antropoceno.
A diferença é que o primeiro aponta uma dúzia de balas de prata globais, enquanto o segundo enaltece meia dúzia de iniciativas locais com potencial de fazer emergir o que seria “um novo sistema econômico”.
Startup holandesa cria celular ético — Foto: Fairphone/Divulgação
Já os autores não poderiam estar mais distantes. O dinamarquês Bjorn Lomborg, hoje com 58 anos, obteve grande visibilidade quando, aos 37, lançou o polêmico best-seller internacional “O ambientalista cético” (Ed. Campus, 2002). Cientista político, tornou-se professor de estatística desde seu doutorado em teoria dos jogos.
Em 2004, foi quem liderou a criação do Copenhagen Consensus Center, graúdo think tank dedicado à recomendação de políticas pró-bem-estar global, ratificadas por primorosas análises de custo-benefício. Antes de serem publicadas no “Journal of Benefit-Cost Analysis”, da Cambridge University Press, elas são submetidas a um time de economistas de primeira linha, que inclui uns cinco prêmios Nobel.
Bem distante de tão sofisticado laboratório desponta o promissor debutante Paddy, com o raríssimo sobrenome Le Flufy. Graduado em matemática em Cambridge, passou a ter vida dupla desde a obtenção do título de contador pela KPMG de Londres. Um semestre no sistema financeiro e outro em lugares dos mais remotos, para viver com pessoas das mais exóticas.
Economista Kate Raworth fala sobre a “economia donut” em apresentação do TED — Foto: Bret Hartman/TED
Aprendeu muito com camponeses moçambicanos e com os caçadores-coletores Hadza, na Tanzânia, antes de ir para a floresta amazônica, para mais um ano de aprendizado junto a outros povos originários, graças a prêmio da Royal Geographical Society. Desde 2015 se reassentou em Londres, para produzir o livro lançado em março.
Apesar de caminhos tão radicalmente distintos, os dois autores têm propósito comum. Enquanto Lomborg luta para melhorar a gestão dos recursos financeiros disponíveis para imediata ajuda ao desenvolvimento do Sul global, Le Flufy se empenha em descobrir “tecnologias organizacionais” para mudança da ordem sistêmica.
Mas é claro que o ultrapragmatismo do primeiro sobre o possível desempenho da metade mais pobre do mundo nos próximos seis ou sete anos discrepa completamente do caráter de certa forma especulativo — por vezes, até “sonhático” — das investigações relatadas pelo segundo.
No centro das preocupações de Lomborg estão as propostas e metas das duas históricas agendas da Assembleia Geral da ONU para impulsionar o desenvolvimento: em 2000, a “Declaração do Milênio”, que logo depois gerou 8 objetivos — ODM — a serem alcançados em 2015. E a sucessora “Agenda 2030”, que deu muito mais ênfase ao desafio da sustentabilidade, expandindo os objetivos — dos agora ODS —, para 17.
Embora reconheça que a dinâmica de elaboração da segunda — Agenda 2030 — foi incomparavelmente mais ampla, participativa e democrática, Lomborg se empenha em mostrar que tanta legitimidade acabou por ser um tiro pela culatra. Como os já excessivos 17 ODS teriam 169 supostas metas, a montanha teria parido um rato.
Mesmo que isto até combine com o que dizem muitos dos que querem o sucesso da Agenda 2030, é preciso deixar bem claro que o tão repetido número “169” corresponde aos parágrafos que explicam o significado de cada um dos 17 ODS. Se fossem metas, precisariam vincular alguma variável a uma data, o que só ocorre com pequena parte.
De qualquer forma, é válida a ambição de Lomborg, pois quer mostrar quais foram os ODM mais facilmente cumpridos em 2000-15 e sugerir quais políticas trariam resultados mais rápidos e com menos custos. Quer dizer quais são os melhores alvos para se alocar os recursos governamentais e filantrópicos reservados ao desenvolvimento sustentável.
Depois de minuciosas comparações, chegou a 12 propostas concretas, atingíveis, relativamente baratas e eficientes. Se adotadas, anualmente seriam salvas 4,2 milhões de vidas, com investimento de US$ 35 bilhões. Simultaneamente, a metade mais pobre do mundo elevaria sua renda em US$ 1 trilhão.
Um respaldo para tamanha ambição foi dado pelo desempenho dos ODM entre 2000 e 2015. Nesses 15 anos em que dobrou o montante das ajudas ao desenvolvimento, a mortalidade infantil caiu quase pela metade. Ao contrário dos fracassos da dúzia de declarações adotadas pela ONU ao longo de toda a segunda metade do século XX.
As propostas de Lomborg começam por rápida erradicação da tuberculose, que ainda mata mais de 1 milhão de pessoas por ano. Mesmo que as tendências demográficas não ajudem, diz ser possível reduzir em 1,5 milhão o revoltante “pedágio” das mortes por doenças crônicas. Tão importante quanto aumentar a produtividade agrícola e colocar todas as crianças na escola, duas outras de sua dúzia de “best things”.
É bom saber que a referida “metade mais pobre do mundo” corresponde a 4,1 bilhões de pessoas, perto de 50% da população mundial. É formada pelas nações de baixa e de média renda per capita. As primeiras são 28, em maioria na África, com 700 milhões de habitantes. As outras são 54, com 3,4 bilhões de vidas humanas, um terço na Índia.
O jovem Paddy Le Flufy abre seu livro com visão mais otimista da Agenda 2030, mas para compará-la a recentes relatórios sobre as preocupantes vicissitudes da biosfera, em vez da vencida Declaração do Milênio, como faz Lomborg. Sem deixar de ressaltar a estimativa do Banco Mundial de que 700 milhões de pessoas foram empurradas para a extrema pobreza em 2022.
Abre o livro avisando que é fascinado pelas ideias da professora Kate Raworth, de Oxford, autora do livro “Economia Donut” (Zahar, 2019). Foi ela quem primeiro usou uma rosquinha para representar os limites externos e internos das atividades humanas. Em obra que, para o jornal “The Guardian”, “vai mudar o mundo”.
No Brasil para o lançamento de seu livro, Raworth deu ótima entrevista a Diego Viana, na qual foi destacada a necessidade de “superar a dicotomia Estado x mercado”, fazendo com que a economia se torne “regenerativa e circular” (Valor, 19/7/2019). O problema é que ela quer botar areia demais no caminhãozinho dos economistas.
Acha urgente que eles adotem “sete modos de pensar”. Os três primeiros são: (1º) tornarem-se “agnósticos”, em vez de “viciados”, em crescimento, (2º) não mais supor que este seja redutor de desigualdades e (3º) que possa ajudar a cuidar da biosfera. Três “caminhos” que levariam ao (4º) troca do PIB por bússola similar ao seu donut.
Bem mais desafiadores são os outros três, pois esbarram em dificuldades cognitivas ainda mais sérias: (5º) a ideia de mercado autorregulado, (6º) o mito do homem econômico racional e, sobretudo, (7º) a ingênua noção de equilíbrio. A este trio a autora contrapõe outro: a) visão de economia integrada e imersa (“embedded”), b) entendimento da adaptabilidade humana e c) ideia de complexidade dinâmica.
Mas há incoerência entre a constatação de que são gigantescas as pressões em favor da inércia e a entusiástica aposta de que o ícone da rosquinha triunfe por volta de 2030. Até parece adequado para o Antropoceno, mas não para este século, cerne da crítica que apareceu em coluna do ano anterior (Valor, 25/4/2018).
Mutatis mutandis, o mesmo pode ser dito sobre o livro do empolgado Le Flufy. Depois de propor (1) que o Donut seja adotado por administrações locais e regionais, apresenta o que seriam os outros cinco arranjos institucionais virtuosos: (2) economia circular, (3) um modelo de governança empresarial apelidado de “Future Guardian”, (4) redes regenerativas, com destaque para quatro já existentes — “Fab Labs”, “Transition Network”, “Bendigo Community Banks” e “Open Source Ecology” —, (5) um alternativo sistema monetário soberano e (6) moedas complementares.
Também ressalta a existência de ao menos três corporações que já estariam bem adiantadas na transição ao que seria o tal novo sistema: uma fabricante inglesa de veículos chamada Riversimple, a manufatura holandesa de smartphones da marca Fairphone e a bem conhecida Patagonia, do ramo de roupas e acessórios esportivos, doada, em 2022, para o combate ao aquecimento global.
Com certeza são dois livros que merecem muita atenção, mesmo que nenhuma das duas trilhas corresponda à mais provável trajetória do desenvolvimento, seja na esfera global, adotada por Lomborg, seja nas diversas escalas nacionais e subnacionais privilegiadas por Le Flufy.
Não se dará a mínima atenção às propostas de Lomborg nas discussões sobre o pífio andamento da Agenda 2030, que terão extraordinário momento daqui três meses, em Nova York, quando se espera que líderes do mundo todo procurem entender por que só 12% das metas estão sendo atingidas.
Ainda mais improvável é que, nos próximos anos, razoável parte dos mais decisivos atores do desenvolvimento local nem cheguem a tomar conhecimento dos conselhos de Le Flufy. E, se o fizerem em meados deste século, descobrirão uma miríade de obstáculos a serem superados para que possam começar a serem postos em prática.
Mesmo assim, tanto o ultrapragmatismo de Lomborg, quanto as cativantes aspirações de Le Flufy, são ingredientes fundamentais da primeira utopia do Antropoceno, o querido desenvolvimento sustentável. Mas, atenção, no sentido nobre do termo utopia: “a visão do futuro sobre a qual uma civilização estabelece seus planos, fundamentando seus objetivos ideais e suas esperanças”, conforme André Gorz (1923-2007).
José Eli da Veiga, professor sênior do Instituto de Estudos Avançados da USP, está lançando o livro “O Antropoceno e as humanidades” (Editora 34): www.zeeli.pro.br