O presidente Luiz Inácio Lula da Silva deve sancionar nesta segunda-feira, 3, a lei que cria a obrigatoriedade de equiparação salarial no Brasil. A expectativa do Ministério das Mulheres é que a entrada em vigor da nova legislação traga uma “mudança de cultura” e ganhos econômicos para o país, revela a secretária-executiva do ministério, Maria Helena Guarezi.
A principal aposta para a “mudança de cultura”, diz a secretária, é a criação do relatório de transparência. Por ele, empresas e instituições com mais de cem empregados terão de publicar semestralmente os dados de remuneração do quadro de pessoal detalhados por gênero. Se deixar de apresentar o relatório, o empregador está sujeito a multa de até 3% da folha de salários, limitada a cem salários mínimos (R$ 132 mil).
Para evitar subterfúgios no pagamento de benefícios por fora do salário oficial, a lei fala em equidade “salarial e remuneratória”. O Executivo ainda vai regulamentar os dispositivos da lei.
O público feminino é o principal alvo, mas não o único. A lei estabelece remuneração igual a ser paga no exercício de “idêntica função” por “todo trabalho de igual valor” no mesmo estabelecimento empresarial, sem distinção de sexo, etnia, nacionalidade ou idade. Também estabelece critérios para remuneração diferente em caso de capacitação técnica e tempo de função.
A legislação propõe outras medidas para a busca da igualdade salarial, como disponibilização de canais específicos para denúncias; promoção e implementação de programas de diversidade e inclusão no ambiente de trabalho por meio da capacitação de gestores, lideranças e empregados sobre equidade entre homens e mulheres no mercado de trabalho, com aferição de resultados; e fomento à capacitação e formação de mulheres para ingresso, permanência e ascensão no mercado de trabalho em igualdade de condições com os homens.
De acordo com o Fórum Econômico Mundial, o Brasil é o 57º, entre 164 países, no ranking da igualdade entre os salários. Na média, uma mulher recebe no Brasil o equivalente a 72,6% do salário de um homem. A Islândia lidera o ranking deste ano e é único país do mundo em que a diferença é inferior a 10% (ver quadro).
Em entrevista ao Valor, Guarez
i cita o que ela espera que a lei trará de benefícios para o país, como a projeção de Organização Internacional do Trabalho segundo a qual, se diminuísse em 25% a desigualdade de gênero salarial, o Brasil poderia ter ganhos extras de 3,3% no Produto Interno Bruto em cerca de uma década. O dado da OIT é de 2017, mas de lá para cá a situação não mudou muito.
Guarezi também menciona o aumento da circulação de dinheiro e o consequente impulso na economia, aumento da diversidade, da criatividade bem como o surgimento de ganhos inesperados. Para tanto ela cita o exemplo de empresa que ao contratar mais mulheres fez modificações no sistema de trabalho e isso contribuiu para a saúde dos funcionários homens.
A seguir, a síntese da entrevista.
O presidente sanciona a lei nesta segunda-feira. Estamos ansiosas. Posso dizer em nome de todas as mulheres brasileiras: é um dia que a gente aguarda há mais ou menos 80 anos, desde a provação da CLT. Desde então, muitíssimo pouco se avançou nesse sentido. Então essa lei tem um caráter regenerativo da vida da gente. É um momento bastante importante, em especial para nós, mulheres.
Salvaguardas antidiscriminação
O primeiro dispositivo para que isso não ocorra é o senso de lucidez. Historicamente, toda vez que as mulheres buscam algum direito, sempre vem essa questão. Isso aconteceu na questão da licença maternidade e outros tantos casos. Matematicamente falando, se você substituir uma mulher por um homem nesse novo processo, vai dar no mesmo, porque vai pagar o mesmo salário. Então, o empregado pode fazer a opção por querer um homem, mas pode estar perdendo em criatividade, porque a diferença sempre é mais rica, diferença sempre traz outros elementos. Trazer as mulheres com esses potenciais, inclusive muitas com mais escolaridade do que os homens, só vai trazer benefícios. Não trazer seria desperdício de potencial.
Estamos num momento histórico bastante interessante, importante, no qual as pessoas estão se dispondo a fazer isso. Tem esse processo amplamente sendo debatido com a sociedade e com os empresários. Se você pensar a forma como essa lei foi aprovada, é uma demonstração de que há, não digo um consenso, mas um processo de entendimento de que isso é importante para a sociedade, para as empresas, para as mulheres. Quando a gente entrou no processo de debate lá junto com a Câmara dos Deputados, havia uma resistência muito grande por conta de dúvidas que havia. Nó dissemos “essa lei tem um caráter mais amplo, ela não veio para punir, mas para melhorar possibilidades”. Foi um processo de construção coletiva. A gente conseguiu trazer vários setores para debater. Era para ser uma lei gigante e acabou sendo uma lei mais direta, objetiva, mas mais consensuada.
Construção da igualdade
Considero bastante relevante a gente falar que era um compromisso do presidente Lula. Ele está buscando a construção da igualdade. Igualdade salarial, racial, social. Quando fomos estudar as leis de igualdade que estavam na Câmara, percebemos que uma falava só de multa e fomos estudar como isso se deu em outros países. Percebemos que a própria União Europeia fez um documento dizendo que leis semelhantes não tinham surtido efeito na Europa. O que surtiria efeito seria uma lei da transparência. A gente precisa ter relatórios para demonstrar a transparência nas empresas, porque em um relatório de transparência você vai poder perceber com mais facilidade se o seu salário é igual ao do seu companheiro de trabalho. Se houve diferença, cabe a multa, uma multa até mais agressiva, mas o que se quer é alterar a cultura. O relatório vai demonstrar nos seus vários níveis onde estão as mulheres e como a empresa pode fazer para melhorar essa participação das mulheres. Nós sabemos que essa diferença salarial entre homens e mulheres também está muito localizada na diferença de possibilidade de ascensão. O empregador vai poder construir um plano primeiro para mitigar essa diferença, mas no segundo momento ele pode é mudar a cultura dentro da empresa e é isso que a gente quer.
Impactos sobre a economia
Não temo que possa ocorrer um achatamento das posições disponíveis para as mulheres. Pode ser até que um outro caso aconteça. A sociedade e as grandes empresas já estão percebendo que incluir diversidade no processo de gestão só tende a beneficiar a empresa, que isso é uma riqueza. Organismos internacionais, como Banco Mundial, FMI, Fórum Econômico Mundial e OIT já sinalizam isso. Não há dados bem efetivos, porque poucos países estão nesse processo. Mas na Islândia, o país que tem a melhor igualdade entre homens e mulheres, é possível ver que houve melhora do PIB. Tem uma estimativa da OIT de que a igualdade salarial de gênero pode melhorar o PIB em até 0,2 ponto percentual, dependendo do país. Quando as mulheres também têm mais dinheiro, circula mais dinheiro. Circulação de dinheiro é o grande fluxo de valorização da economia.
A gente ainda não fez esse estudo. No dia 1º de agosto estamos instalando um grupo de trabalho interministerial especificamente para tratar da regulamentação da lei e também tratar de todas essas questões. A gente já conversou com o Ministério da Fazenda e com outros ministérios para ver como analisar esse processo. No grupo de trabalho interministerial também estarão presentes representantes de empresas e de trabalhadores. Queremos construir uma regulamentação que venha a melhorar a cultura, não é nossa intenção punir. Queremos produzir igualdade. Tem um conceito que é sociológico, que é o seguinte: igualdade é direito fundamental e universal. Então, igualdade é uma necessidade. Temos que criar condições iguais para as pessoas poderem estar em todos os espaços onde elas queiram estar.
A produção da diversidade ajuda a mudar a cultura. Por exemplo, se eu pensar em educação que é a minha categoria, quando eu saí nós tínhamos 78% de mulheres. É importante que os homens também começam participar desse espaço em paridade, porque eles vão trazer outros elementos. Eles vão trazer outras formas de construir esse espaço e isso certamente vai melhorar a educação brasileira também. Na saúde, nós temos mais médicos e menos enfermeiros, mas se a gente também tiver mais enfermeiros e mais médicas, também vai melhorar. Eu coordenei o programa de gênero de uma empresa que tinha poucas mulheres. Havia apenas um banheiro feminino para quatro andares, mas a empresa ignorava que havia muitas mulheres no quadro de terceirizados. Em outro caso, uma empresa tomou a decisão de ter 50% de mulheres. Ela percebeu que as mulheres não entravam porque tinha que carregar sacos de 60 kg. E elas não tinham muita força. Então passaram a operar com sacos de 20 kg. O que aconteceu? Melhorou a saúde dos homens. Porque eles ficavam com menos problemas de coluna. Esses processos de igualdade veem demonstrar novas exigências, que podem melhorar inclusive a lucratividade da empresa. Tem a questão do assédio moral e sexual. Quando tem poucas mulheres no espaço, elas são mais suscetíveis.
Paralelo com outros países
A lei brasileira não se espelhou na experiência de outros países. Nessa perspectiva da União Europeia, que diz que não basta ter uma multa, nós pensamos: “não podemos cometer o mesmo erro, temos que avançar para a questão da transparência. A gente fez uma adaptação. Repito: a gente quer não é punir, mas se houver necessidade, faremos punição. Essa questão da transparência existe em outros lugares, mas não sei se são como será no Brasil. Não temos dados. Em 146 países nós estamos em 117º na igualdade. Então temos tudo para avançar. A gente acredita que essa lei é possível e, com a regulamentação, ela venha a ser eficaz.
Quando nós começamos a construção desse projeto de lei era para entrar a licença parental, mas, analisando aqui, nós tiramos. Primeiro que a gente queria que a lei fosse aprovada sem que tivesse muito conflito. Mas a licença parental é uma coisa que está no nosso universo, que a gente está estudando. Tem um grupo de trabalho interministerial (GTI), criado no Ministério do Desenvolvimento Social e que a gente faz parte que está tratando exclusivamente disso, da política do cuidado. Ele se chama GTI da Igualdade salarial, Remuneratória e Laboral, porque tem a ver com essa questão da licença parental. Tem empresas hoje que não pagam participação nos lucros ou resultados para mulheres que ficaram no período de licença maternidade. Esse período também é excluído da contagem de tempo ara subida de carreira.