Nas últimas décadas, questões ligadas a sexualidade voltaram a ser um eixo de lutas sociais e reivindicações políticas. Nesse contexto, discursos clínicos sobre o sexual foram muitas vezes questionados por possivelmente naturalizarem disposições disciplinares sobre diferença sexual, gênero e configurações familiares. Pois era como se setores fundamentais da clínica fossem necessariamente solidários de certa forma de “patologização” dos comportamentos sexuais.
Por trás da escuta de certas formas de sofrimento psíquico, haveria as engrenagens em funcionamento de um setor avançado da preservação de padrões heteronormativos, ligados à preservação da estrutura da família burguesa. E no campo dessas clínicas do sexual, a crítica à psicanálise teve um lugar preponderante. O que não deveria nos estranhar se levarmos em conta o lugar importante que a psicanálise historicamente desempenhou na formação da cultura contemporânea e na nossa forma de falar de sexo.
Certamente, não era a primeira vez que a psicanálise se via confrontada por demandas de reconhecimento vindas de lutas sociais que ela teria dificuldade em reconhecer. Foi assim na longa batalha de despatologização da homoafetividade. E foi mais uma vez assim quando grupos de psicanalistas acharam por bem afirmar, recentemente, que estaríamos a viver uma espécie de “epidemia trans” nas sociedades ocidentais.
Talvez por isso outros grupos de psicanalistas procuraram fazer o movimento inverso da maneira a mais rápida e irrefletida possível. Ou seja, era o caso de proclamar a compatibilidade estrutural da psicanálise com as novas levas de teorias sobre a sexualidade e suas dissidências, sem que fosse o caso de perguntar se talvez houvesse mesmo algo de irredutível e que não se reduzisse à defesa reacionária de naturalizações indevidas.
Nesse sentido, o livro da filósofa eslovena Alenka Zupancic “O que é sexo?” é uma contribuição importante para a clarificação do debate. Nome importante nas articulações sobre o impacto da psicanálise no campo da filosofia e da teoria social, Zupancic vem de um horizonte intelectual que conectou, de forma heterodoxa, pensamento crítico e psicanálise no momento do colapso da antiga Iugoslávia. Horizonte que conta, entre seus nomes mais conhecidos, com Slavoj Zizek e Mladen Dolar.
A tese central do livro de Zupancic é que a psicanálise, em especial no seu eixo Freud-Lacan, traz uma concepção de sexual que porta ainda uma forte carga política e singular. Ela se encontra em uma noção de sexo não redutível nem à normatividade biológica nem ao construtivismo simbólico. Uma via que permite retirar a discussão sobre sexualidade do embate entre construtivistas e deterministas atualmente reinante.
Os primeiros defendem que falar de “sexo” é uma maneira de esconder o caráter social das construções que usamos, com seus binarismos e hierarquias. Melhor seria usarmos termos que deixam mais clara essa natureza construtiva, como gênero, sexualidade, performatividade, entre outros. Já os deterministas acreditam que há normas biológicas que determinam positivamente nosso comportamento sexual e só mesmo uma perversão catastrófica para nos fazer esquecer disto.
Zupancic tem algo diferente a nos dizer, a saber, a psicanálise trouxe desde Freud a noção do sexual como errância e contínuo desvio. Errância essa que ela não limitou ao campo do humano, mas que a encontrou no próprio “campo da natureza”.
Isso significa que o caráter desviante da sexualidade humana não seria a deturpação de um princípio natural. Ele seria a expressão da “negatividade abissal da sexualidade natural”. Contrariamente a certa defesa, tão comum, de um “excepcionalismo humano” que estaria vinculado a nossa capacidade pretensamente única de associar ação e liberdade, Zupancic insiste que a indeterminação própria à sexualidade humana não nos diferencia ontologicamente do resto da natureza. Nós apenas explicitamos algo que se encontra, em um nível ou outro, também no comportamento animal.
Pode parecer alguma forma de ironia involuntária defender sexo como o contínuo desvio de uma norma que não existe. Mas se a psicanálise encontrou sexo atravessando todas as nossas experiências de satisfação não é por sermos seres obcecados por copulação. A operação era mais complexa.
Tratava-se de lembrar que todo e qualquer prazer produz ainda mais prazer quando desviado, quando conectado com outros objetos que não seus objetos primeiros. Por trás de nossa fixação a certos objetos há essa negatividade mais bruta que nos faz errar por entre objetos, associar processos e experiências até então sem relação natural. E exatamente isto definiria a natureza sexual de nosso desejo. Há sexo em tudo referente a nosso desejo porque tudo o que desejamos pode transbordar para outra coisa.
Não deixa de ser sugestivo perceber o que aconteceu com a clássica noção de “libido”. Desde Santo Agostinho, fala-se de libido para se referir ao desejo insubmisso, difícil de governar por parecer nunca se adequar completamente à norma. Freud tinha isso em mente quando recuperou o termo para seu projeto de uma clínica do sexual. O mérito de Zupancic consiste em insistir nesse ponto e tirar todas as consequências possíveis. Isso a ponto de afirmar que “a sexualidade é o território problemático do ser que parece nos desorientar”.
Mas, como eu dissera anteriormente, há um horizonte político nesse projeto de dar ao sexo a dimensão de um impasse ontológico irredutível que nos retira tanto da sujeição a uma normatividade biológica quanto aos limites de uma construção social. É possível que uma das tarefas mais complexas e ricas da política de nossa época seja pensar a força capaz de nos mover para uma nova forma de universalismo, que não seja o universalismo que conhecemos até agora, a saber, a universalidade de uma pretensa humanidade que nos seria comum, como se houvesse um quadro normativo já estabelecido do humano, no interior do qual todos deveriam encontrar um lugar.
É possível que estejamos a lutar por um outro universalismo, este fundado no reconhecimento da des-identidade que habita todo corpo, no antagonismo que empurra tudo o que é vivo para fora de si mesmo e cuja marca mais forte em nós aparece quando tentamos responder à pergunta: o que é sexo?
O que é sexo?
Alenka Zupancic Trad.: Rafael Bozzola Autêntica 288 págs., R$ 74,90
Vladimir Safatle é filósofo, escritor e músico