Enquanto Hollywood confia a retomada pós-pandemia à sucessão de sequências com heróis estabelecidos, um se despedindo (o Indiana Jones de Harrison Ford), outro a caminho (o Ethan Hunt de Tom Cruise, no dia 21, em “Missão Impossível 7”), a mais longeva franquia cinematográfica acaba de finalmente adentrar uma espécie de panteão fílmico.
Às vésperas de completar 60 anos de sua estreia, “Moscou Contra 007” (1963), no original “From Russia With Love”, é a primeira aventura nas telas de James Bond a ganhar uma análise na seleta série de monografias da BFI Film Classics (112 págs, US$ 14,47, disponível em Kindle no original em inglês).
Pesquisadora visitante na Universidade de East Anglia, na Inglaterra, a autora Llewella Chapman não é uma neófita em estudos bondianos. Há dois anos Chapman publicou o principal estudo sobre a evolução dos figurinos nos filmes do espião britânico com licença para matar criado em 1952 por Ian Fleming (1908-1964), “Fashioning James Bond: Costume, Gender and Identity in the World of 007 (Bloomsbury Academic, 2021, 336 pags, US$ 29,95, inédito em português).
Para o filme e para a ensaísta, é um feito editorial e cinematográfico e tanto. Publicada ininterruptamente há mais de três décadas, a coleção da BFI já contemplou filmes clássicos com ensaios originais de tirar o chapéu, como “Cidadão Kane” (1941), por Laura Mulvey; “O Mágico de Oz” (1939), por Salman Rushdie e “Os Pássaros” (1963), por Camille Paglia, para ficar em apenas três exemplos de livros que ganharam edição nacional pela editora Rocco no final dos anos 1990, infelizmente hoje esgotados.
Comprovando o ecletismo, títulos mais recentes dissecavam “Encontros e Desencontros” (2003), por Suzanne Ferris; o cubano “Memórias do Subdesenvolvimento” (1968), por Darlene J. Sadlier; e “Todos os Homens do Presidente”, por Robert B. Ray e Christian Keathley. No prelo, nada menos que “Caminhos Perigosos” (1973), por Demetrios Matheou, e “A Felicidade Não Se Compra” (1946), por Michael Newton, entre outros. Não surpreende, assim, a chancela do mestre americano Jonathan Rosenbaum, que a classificou como “talvez a mais generosa série de livros na história da critica cinematográfica”.
Por que então “Moscou Contra 007”, que você pode ver ou rever em várias plataformas de streaming? Llewella Chapman não hesita: trata-se do “filme mais criativo, cheio de suspense e emocionante da série Bond”. Para secundá-la, ela lembra a pesquisa realizada em 2004 pela revista especializada britânica “Total Film”, que classificou “Moscou Contra 007” como “o nono maior filme britânico de todos os tempos”.
Central à persuasiva argumentação de Chapman é o fato de “From Russia With Love” representar apenas o segundo título da série aberta em 1962 por “007 Contra o Satânico Dr. No”, também dirigido pelo experiente Terence Young (1915-1994). Produzido ainda antes do lançamento com estrondoso sucesso do filme inaugural, que catapultou para a imortalidade Sean Connery (1930-2020), havia ainda confortável margem de manobra.
“Moscou Contra 007” escapou assim “da fórmula Bond que foi cimentada por ‘007 Contra Goldfinger’ (1964), o filme posterior desenvolvendo o vilão megalomaníaco, as ‘Bond girls’ e os carros esportes modificados”, sustenta a autora. Adaptado por Johanna Harwood e com roteiro final de Richard Maibaum, a trama não se distancia demais do quinto volume publicado por Fleming.
A principal modificação estrutural é Bond enfrentar não a agência soviética Smersh, mas sim uma arapuca urdida por Rosa Klebb (Lotte Lenya), uma agente da contrainteligência russa que secretamente desertou para unir-se à máfia criminosa internacional Spectre.
Atenuados até apenas um certo ponto, os ecos da Guerra Fria combinam-se ao ritmo frenético da narrativa para aproximar “Moscou Contra 007” do ciclo de thrillers britânicos de espionagem da década de 1960, de “Ring of Spies” (1964), de Robert Tronson, e “O Espião que Saiu do Frio” (1965), de Martin Ritt, à serie estrelada por Michael Caine como o agente Harry Palmer (“Ipcress”; “Arquivo Confidencial”; “Funeral em Berlim”; “O Cérebro de Um Milhão de Dólares”). O breve engajamento do criador literário de Palmer, Len Deighton, entre os roteiristas de “Moscou”, ausente dos créditos, talvez tenha sua influência subestimada.
Para além da minuciosa reconstituição da feitura do filme, Llewella Chapman o radiografa a partir da leitura estruturalista de Umberto Eco, baseada em seu estudo das narrativas de Fleming como jogo, e da análise feminista de Laura Mulvey sobre a objetificação da mulher no cinema pelo olhar masculino. A crítica promete ainda desenvolver novos estudos sobre a subestimada (e sub-remunerada, como mostra um quadro) participação das mulheres nas produções da série.
“Talvez Bond 26 (o próximo) possa ter a primeira mulher na cadeira da direção?” é a pergunta certeira de Chapman na página final. Mais importante do que suceder a Daniel Craig como 007, não há dúvidas que seria.