Tem gente que adora. Tem quem deteste. Mas o uso de palavras estrangeiras por aqui não é moda recente, nem deixará de ser, até porque nenhum idioma – nem o inglês – é à prova de influências externas.
Anglicismo costuma incomodar mais quando substitui palavras usuais do português. Por exemplo: por que um jornal noticiou que o Museu da Língua Portuguesa terá um café no rooftop? O museu divulgou a inauguração de um café na cobertura.
“Tecnicamente, nenhuma das duas alternativas está errada. Mas a imagem que cada notícia projeta não é a mesma. As línguas são bonitas e democráticas justamente por nos dar liberdade para fazer opções individuais”, comentou, em seu LinkedIn, a intérprete Beatriz Velloso, uma pessoa que, por obrigação profissional, trilha o caminho oposto daquelas que adoram recorrer ao inglês no lugar do português. Beatriz precisa encontrar as palavras certas em português para traduções em tempo real.
Jornalista, ela já acumula 15 anos de experiência como intérprete e tradutora. Então eu quis saber o que ela pensa de tanto uso de inglês por aqui.
Beatriz: “Trabalho muito para o mercado corporativo, multis, bancos, e vejo muitos termos. Se você está falando com pares, com gente que fala essa língua, acho que tudo bem, porque todo mundo entende o que é budget, pipeline. O problema é se, na hora de se comunicar com alguém de outra área, os termos voltarem por falta de repertório. Quem é de fora pode não entender.”
Taí uma língua que parece se prestar a invencionices. Falantes do inglês inventam mais de cinco mil palavras por ano e, destas, pelo menos mil são incorporadas ao dia-a-dia e aos dicionários, informa uma reportagem do “The Guardian” que você pode ler aqui.
Para comparação, a última versão do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, que não era atualizado desde 2009, acrescentou mil palavras ao idioma que usamos.
Shakespeare era considerado um exímio neologista. E a tradição segue. Outro dia cruzei com uma palavra no “Financial Times” que é neologismo em cima de neologismo: Bregret, sentimento de quem se arrependeu (verbo to regret) do Brexit, aglutinação de Britain (Reino Unido) com exit (saída) da União Europeia.
Beatriz: “Alguém escreveu no meu post ‘eu quero bater em quem escreveu rooftop’. Calma, não é pra tanto. Alguém comentou que achava mais sofisticado. Estamos muito expostos a inglês o tempo todo. São séries, redes sociais. Então tudo isso tem a ver com nossas referências. A gente manda mensagem, mas não tem ideia do que o outro lado vai receber. Se eu usar um termo inglês, o que essa pessoa vai sentir?”
O anglicismo alimenta muitos jargões, que por sua vez alimentam uma comunicação pouco clara, que alimenta mal-entendidos. Eu boio no mar de jargões de marketing. Ainda não entendi o que é marketing de pipeline embora eu conheça as palavras isoladas. Tento adivinhar o significado de endobranding mas quando descubro que existe inbound marketing eu desadivinho de imediato.
Essa xenomania tem solução? Não sei. Para você, é um problema?
Talvez nenhum país tenha resistido tanto à invasão de palavras inglesas quanto a França. Em 1986, o então presidente François Miterrand declarou que era mais do que resistência. Era guerra. Por décadas, os franceses criaram leis para proteger a pureza de sua língua. Previram multas. Criaram comissões encarregadas de suprir a população com expressões locais para substituir as palavras inglesas. O jornal “Le Monde” não deixou passar. Sandwich, sugeriu o diário, poderia então ser apresentado como deux morceaus de pain avec quelquer chose au milieu (duas fatias de pão com qualquer coisa no meio). Essa história está no divertido livro Mother Tongue, de Bill Bryson. Resultado: depois de muito resistir, hoje os franceses comem le burguer, frequentam restaurantes self-services mais conhecidos por le self, deitam ao sol atrás de le bronzing, e por aí vai.
Provavelmente inspirado pelos franceses, e com a melhor das intenções, o ex-deputado Aldo Rebelo tentou algo parecido aqui. Seu projeto que proibia estrangeirismos e previa multa para os insistentes chegou a ser aprovado em comissão no longínquo ano 2000, mas não foi adiante.
Beatriz: “Considero mais interessante usar estrangeirismos de forma consciente.
Sei por que optei por essa palavra e não aquela? Outra coisa é usar anglicismo sem nem se perguntar se tem jeito melhor de dizer em português.”
Eu: “Às vezes eu olho para tanta palavra de fora um pouco como as pessoas estrangeiras que andam pelo Rio, vestidas de “carioca”, tomando caipirinha em botequins animados por chorinho. Você vê que são de fora mas também são daqui. Você acredita que essa apropriação de tantas palavras em inglês nos desfigure, seja uma colonização cultural?
Beatriz: “Não é para tanto. Claro que tem raízes do poder econômico. Não podemos deixar de olhar para esse lado. O francês já ocupou esse lugar. Em “Guerra e Paz”, Tolstói escreveu trechos enormes em francês, as famílias russas abastadas falavam francês em casa. E foram invadidos por Napoleão. Então tem esse aspecto do poder econômico e cultural, de música, de cinema. Tem que deixar entrar porque as pessoas vão usar, transformar e dar outros significados às palavras em inglês. Não adianta lutar contra. É uma infiltração. Gosto de tentar entender. Avaliar os movimentos diz muito sobre sociedade, história. E esse é o nosso tempo, dominado pelo inglês.”
O mais global dos idiomas, inglês é a língua da academia, da ciência, do mundo dos negócios, da cultura, das redes sociais. Se europeus se sentarem à mesa para negociar irão se comunicar em inglês, para ficarem “no mesmo nível de desvantagem”, declarou certa vez um dos fundadores da Iveco, uma joint-venture de empresas da França, Itália, Alemanha e Suíça.
Estima-se em mais de 300 milhões o número de falantes nativos de inglês. A estimativa é imprecisa porque até os países cuja língua oficial é o inglês possuem habitantes incapazes de usá-la. O número de pessoas que falam inglês como segunda língua é muito maior. E isso provoca transformações no próprio idioma e cria “derivados”.
A comunidade latina nos Estados Unidos responde por uma versão bem conhecida: o spanglish. A premiada escritora americana Sandra Cisneros explora sua origem híbrida (a família é do México) para enfeitar seus contos e romances com termos e palavras como hermana-in-law (cunhada). Quase sempre eu leio com um sorriso no rosto, talvez porque converse com minha origem latina, talvez pelo impacto divertidamente inesperado. Pensarão da mesma forma os americanos que, além de não entender nem o básico do espanhol, preferiam ver os latinos do lado de lá da fronteira?
O quanto a nossa recusa em aceitar uma língua de fora flerta com a xenofobia?
O inglês como “língua franca” é um campo de estudo desse fenômeno global em que um idioma se presta a ser a forma de contato entre tantas nacionalidades. É o inglês sem território, amplamente falado por pessoas com repertórios variados e culturas idem. “Os falantes são considerados usuários do idioma por direito próprio, e não falantes nativos fracassados ou aprendizes deficientes de inglês”, escreve em artigo a pesquisadora Alexa Gogo, uma simpática italiana que adora o Brasil, professora da Goldsmith University, em Londres, e com quem conversei sobre o tema, no fim do ano passado. Alexa é pesquisadora do inglês como língua franca e mostra, em seus trabalhos, diversos exemplos de como os estrangeiros negociam significados e usos do inglês entre si. Esse campo de conhecimento procura entender como “a linguagem é usada, co-construída e moldada para se adaptar ao contexto comunicativo, à situação e aos interlocutores, em vez de ser aprendida”.
O inglês invade o português, mas o português, o francês, o italiano e o espanhol invadem de volta. É a criativa dinâmica das línguas. Não sei quais dos modismos do marketing vão transbordar para fora dos redutos. Algumas palavras sobreviveram à silenciosa negociação de usos e ficaram. Email, brainstorming, feeling e até feedback estão no Houaiss, devidamente marcadas como palavras em inglês. São tão comuns por aqui que os lexicógrafos acharam por bem dar uma satisfação a quem se der ao trabalho de procurá-las no dicionário. Agora tente substituir feedback pela explicação do dicionário: “informação que o emissor obtém da reação à sua mensagem, e que serve para avaliar os resultados da transmissão”.
Pois é. Pelo sim, pelo não, fica gentil garantir que a pessoa com quem você está falando entenda o que significa dar um feedback ou pedir um. Esmiuçar o que é pitch (a apresentação de ideias em tempo curto) para a pessoa não ficar com cara de quem caiu do caminhão de mudança.
Enquanto o próprio Museu da Língua Portuguesa não tiver café no rooftop, acho que tudo bem. “Rooftop is the new laje”, brincou Beatriz num dos comentários bem-humorados que seu post sobre anglicismo provocou. Sigamos. Como escreveu Bill Bryson, “acredite ou não, a maior parte das pessoas fala inglês não porque tenham prazer em ajudar americanos e britânicos monoglotas que não se dão ao trabalho de aprender algumas palavras em suas línguas, mas porque elas precisam para interagir com o mundo.”