O reconhecimento da saúde como um direito fundamental e um bem que pode ser explorado no mercado é um marco de grande relevância na história do Brasil. Há 35 anos, em 1988, a saúde foi positivada no ordenamento jurídico brasileiro como um direito de cidadania, tornando-se uma política essencial para garantir a dignidade e a qualidade de vida das pessoas.
Ao longo dessas décadas, o mundo passou por grandes transformações, especialmente no campo tecnológico, que impactaram a cultura, os costumes, a comunicação e o conhecimento. Essa evolução exigiu um olhar permanente sobre o Sistema Único de Saúde (SUS) em suas diversas áreas, incluindo a saúde digital, a proteção de dados, a atuação do setor econômico na saúde e a participação do setor privado.
É fundamental qualificar permanentemente o conceito de relevância pública das ações e serviços de saúde para mantê-los sob o resguardo do Poder Público. A saúde é um direito fundamental que pode ser explorado pelo mercado, mas é preciso que regras públicas evitem tensões entre direitos contrapostos, inibindo a contaminação do interesse privado sobre o interesse público.
Como afirmou Dalmo Dallari, a saúde é um instrumento de negociação política, pois tem representação econômica e pode ser tratada como mercadoria. Isso exige do Poder Público, conforme determina a Constituição no artigo 197, total controle sobre esses serviços para que não fiquem sujeitos às regras do mercado como se fossem produtos e serviços de consumo livremente comercializados.
O reconhecimento da relevância da saúde exige certos cuidados, como a vedação constitucional do capital estrangeiro na saúde, a comercialização do sangue e partes do corpo humano, o tratamento indistinto dos serviços públicos e privados, todos submetidos à regulamentação, fiscalização e controle públicos.
No entanto, tem sido crescente o poder de influência do setor privado na saúde nos mais diversos campos, como medicamentos, tecnologias, exames diagnósticos, formação de pessoal, tributação, entre outros. Os conglomerados sanitários privados certamente têm poder de influência nas políticas públicas de saúde, e, excetuando os regramentos de cunho técnico-sanitário, há pouca regulamentação nesse campo.
Como exemplo, pode-se citar o capital estrangeiro, que hoje atua totalmente desregulado no mercado brasileiro sanitário. Além disso, há várias outras tentativas de desregulamentar o mercado da saúde, como é o caso do Projeto de Emenda Constitucional (PEC) n° 10, de 2021, que pretende abrir ao mercado o uso do plasma humano para a fabricação de medicamentos, até então sob domínio público.
Tem sido comum alegarem que o apetite do mercado na saúde poderá ser salvaguardado pelo aperfeiçoamento da legislação e dos contratos, convênios e ajustes público-privados, bem como com uma melhor fiscalização. Mas a questão do privado na saúde é mais profunda, indo além dos ajustes público-privados firmados no SUS, seu aperfeiçoamento e acompanhamento, adentrando o modelo assistencial da saúde, seu financiamento insuficiente e a formulação de suas políticas, entre outros aspectos.
É necessário aprofundar essa discussão do privado na saúde considerando o crescente mercado sanitário, especialmente em relação ao capital estrangeiro desregulado na saúde e o seu poder de influência no modelo assistencial. A questão do privado no campo da saúde é um tema que precisa de mais debates, análises, estudos, regulamentação, com consonante melhoria do financiamento público, mais investimentos nos hospitais universitários para impulsionar a necessária inovação do setor, a fim de desfazer a possível armadilha do SUS pobre para os pobres.