O que começou como um projeto sobre as diferenças sexuais entre primatas acabou se expandindo para um livro que aborda os debates sobre gênero por meio do comportamento de chimpanzés, bonobos e outros animais próximos dos humanos. Em “Diferentes – O que os primatas nos ensinam sobre gênero” (trad. Laura Teixeira Motta, Zahar, 576 págs., R$ 149,90), o primatólogo holandês Frans de Waal, professor da Universidade Emory, nos EUA, levanta questões sobre a complexa relação entre biologia e cultura na relação entre os sexos, na diversidade e nas controvérsias do tempo presente.
A complexidade do comportamento sexual e de gênero é ilustrada por casos como o de Donna, fêmea com comportamento aparentemente masculino: De Waal se pergunta se podemos descrevê-la como transgênero. A história de Luit, líder político no zoológico de Burgers, na Holanda, assassinado por rivais em sua jaula, lança a discussão sobre relações de poder e dominância entre primatas, além da querela sobre a agressividade masculina. A história dos bonobos, primatas menos agressivos e com uma vida sexual mais livre, é introduzida por meio de Mimi, que, após ser criada entre humanos, teve dificuldade de se adaptar à vida de um santuário animal da República Democrática do Congo.
De Waal publica livros sobre a relação entre o comportamento humano e a de seus parentes mais próximos entre os primatas desde a década de 1980. Algumas de suas obras mais conhecidas são “Política chimpanzé”, “Somos inteligentes o bastante para saber quão inteligentes são os animais?” e “A era da empatia: Lições da natureza para uma sociedade mais gentil”. Para o primatólogo, a humanidade está começando a perceber que a separação radical entre nós e o mundo animal é ilusória. “Somos primatas, e todas as diferenças entre nós e outros primatas, como chimpanzés e bonobos, é apenas de grau, não de natureza. Charles Darwin já tinha visto isso no século XIX”, diz.
Valor: O livro trata de um tema que gera discussões inflamadas. Como tem sido a recepção?
Frans de Waal: Eu esperava que metade das críticas fossem positivas e a outra metade, bem negativas. Mas não vi essas negativas. Tem havido só algumas críticas pontuais. Talvez porque quem não se importa com a biologia simplesmente não lê o que escrevo. Em geral, a recepção tem sido positiva. E há uma diferença entre homens e mulheres. Os homens têm sido mais analíticos: discutem a metodologia ou a definição de gênero versus sexo, coisas assim. As mulheres são mais diretamente afetadas pelo tema do gênero. É um assunto mais importante para elas. Então olham mais para minhas opiniões. Ou seja, reagem se perguntando se concordam ou não.
Valor: E a comunidade LGBT?
De Waal: Na França, falei em vários podcasts que tratam de feminismo e do tema LGBT. Todos foram muito receptivos. Quem lê o livro vê que defendo uma sociedade muito mais tolerante. Hoje, nos Estados Unidos, temos muita discussão sobre transgêneros, repetindo a discussão sobre homossexualidade, 30 anos atrás: é uma escolha de vida? Hoje, acho que poucos ainda pensam que ser homossexual é uma escolha. Com a discussão transgênero, estamos passando pela mesma coisa. As pessoas querem apresentá-la como uma escolha, um modismo. Defendo no livro que há biologia por trás. Não é só modismo, é muito mais do que isso.
Valor: O sr. diz que o único comportamento encontrado só nos humanos é o preconceito: a exclusão dos homossexuais, dos transgêneros etc. Alguns autores pensam que esse comportamento é uma permanência das sociedades fechadas, em que a exclusão serviria para reforçar a coesão do grupo. É uma boa explicação para o preconceito?
De Waal: Isso não acontece, por exemplo, entre primatas. Descrevo casos de indivíduos que são diferentes dos demais e os primatas não os excluem. Ora, eles também têm vida em grupo e precisam de coesão. Portanto, não tenho certeza se essa é uma boa explicação. Eu gostaria de ver os dados sobre a tolerância em sociedades pequenas e fechadas. Aposto que os níveis de tolerância são bastante altos, mas nunca vi artigos sobre isso. Em grupos, por exemplo, de caçadores-coletores, digamos que haja um indivíduo homossexual. Não acho que eles os excluam. Nunca ouvi isso.
Valor: O sr. diz também que “a biologia não precisa ser obedecida, mas sempre deve ser considerada”. Como desobedecemos a biologia sem desconsiderá-la? É uma questão de tecnologia?
De Waal: A tecnologia pode fazer muitas coisas. É claro que as pessoas transexuais usam a tecnologia para mudar seu gênero e deixá-lo mais alinhado com o que sentem que são. Portanto, há biologia por trás disso, pois elas nascem com a identidade de gênero diferente de seu corpo e, em seguida, buscam mudar tecnologicamente o corpo para se adequar à identidade de gênero. E isso é bem-sucedido até certo ponto. Claro, não se pode transformar perfeitamente um corpo de homem em mulher e vice-versa. Mas pode-se pelo menos ter a aparência externa, o que já ajuda.
Valor: A revolução sexual também é em parte atribuída a uma tecnologia: a pílula anticoncepcional.
De Waal: A pílula é uma invenção muito importante, que teve um enorme impacto na forma como encaramos os gêneros. Acho que o atual debate sobre gênero não existiria se não tivéssemos a pílula, porque teríamos famílias com dez filhos e não haveria espaço para muita discussão. E agora as mulheres podem escolher: ter filhos ou não? Quantos filhos? Isso mudou tudo. É uma inovação tecnológica que mudou nossa discussão sobre gênero.
Valor: O sr. discute a socialização, em que a imitação tem grande papel. A mudança do comportamento paterno, por exemplo, vai produzir uma geração de meninos socializados de outra maneira?
De Waal: As pessoas superestimam a socialização: como pais, pensam que socializam seus filhos. Não estou certo de que os pais tenham tanto efeito, exceto pelo exemplo. Pode-se dizer a um garoto cem vezes que ele não deve ser agressivo. Mas, se o pai for agressivo, ele vai copiar seu comportamento, não importa o que lhe digam. As pessoas subestimam a autossocialização das crianças. Elas olham em volta: pais, professores, mídia. E é isso que pegam. Nos primatas, boa parte da socialização é autossocialização, captando o comportamento dos outros. Hoje, se o homem está mais envolvido com a família e é um pai mais presente, acho que os meninos vão herdar isso. Não é preciso ensinar nada: eles mudam seu comportamento porque os adultos mudam o seu e eles veem. Os estudos apontam, nos outros primatas, que as fêmeas jovens copiam suas mães e os machos jovens copiam os machos adultos. Um estudo sobre orangotangos na floresta descobriu que as fêmeas jovens comem exatamente o que suas mães comem. Os machos jovens têm uma dieta diferente, porque observam os machos adultos, que só se aproximam ocasionalmente. Isso é autossocialização. Provavelmente também se aplica ao comportamento ligado ao sexo, como o quão agressivo um indivíduo é.
Valor: Ao falar da chimpanzé Donna, o sr. diz que, nos animais, “é difícil saber se são transgênero”. Por que é mais fácil para os humanos? São os marcadores culturais?
De Waal: Bem, se podemos falar sobre transgêneros, é porque falamos. Então a linguagem é importante. É verdade que temos muitos sinais externos de gênero, que os outros primatas não têm. Eles têm o corpo, claro, e como ele se manifesta. Mas não fazem coisas adicionais, como fazemos com a roupa e o cabelo. Mesmo assim, não tenho certeza se há cem anos falávamos sobre o tema do trans. Provavelmente não. Essa é uma discussão recente, porque nos demos conta de que nossa identidade de gênero não precisa corresponder ao corpo que temos. Existem indivíduos que são excepcionais a esse respeito e é por isso que agora temos a terminologia.
Valor: A descoberta dos bonobos impactou as discussões fora da primatologia?
De Waal: Algumas pessoas, principalmente feministas, amam o bonobo. É claro: os bonobos são dominados pelas fêmeas. É uma sociedade do tipo feminino. Outro grupo tenta ficar longe do bonobo, não sabe o que fazer com ele, porque é muito pacífico. Esse grupo tem seus modelos de evolução humana baseados na guerra, nos vínculos masculinos, e em como um grupo de machos elimina outro grupo de machos. Essa é a imagem da história e o bonobo não se encaixa. Só que o bonobo é exatamente tão próximo de nós quanto o chimpanzé e igualmente relevante. Ele deve ser considerado nos modelos de evolução humana. O fato de serem mais pacíficos e eróticos e terem muitos vínculos femininos é interessante, porque acho que na sociedade humana há muito vínculo feminino e a espécie humana é muito erótica. Evitamos falar sobre isso, preferimos falar sobre violência a falar sobre sexo, mas somos uma espécie muito sexy.
Valor: Ao estudar os animais, parece que projetamos nossas próprias angústias. Estamos sempre procurando nós mesmos através dos animais, em vez dos próprios animais?
De Waal: Sim, é o que sempre fizemos. Escrevi um livro sobre inteligência, por exemplo. Para quem estiver objetivamente interessado na inteligência dos animais, há muitas coisas a estudar. Mas focamos os estudos nas coisas em que somos bons. Por exemplo, linguagem e em tecnologia. Então estudamos o uso de ferramentas pelos chimpanzés. Mas, se você olhar para a ecolocalização dos morcegos, é uma habilidade muito complexa. Qualquer engenheiro que projeta sistemas de radar pode confirmar. Mas como não fazemos isso, não estamos interessados. Somos antropocêntricos em nossa abordagem. Estudamos os animais para saber mais sobre nós mesmos e, às vezes, também para nos diferenciar, poder dizer que fazemos determinada coisa melhor do que o animal. Agora, acho que isso está mudando. Estamos mais abertos sobre a inteligência de animais como abelhas, morcegos, polvos. Espécies muito diferentes de nós. Estamos ficando menos antropocêntricos.
Valor: Esses temas se tornaram mais importantes ao longo de sua carreira. Suas próprias perguntas mudaram ao longo dos anos, conforme o mundo mudava?
De Waal: Sim. Quando comecei a escrever este livro, pensei que falaria sobre sexo e diferenças sexuais nos primatas e como isso corresponde ao sexo e às diferenças sexuais nos humanos. Mas logo vi que seria importante incluir o que é gênero, porque é algo cultural e relacionado a como pensamos que devemos nos comportar, nossas normas sociais. Também me interessei pela diversidade de gênero porque há muito comportamento homossexual em primatas, principalmente nos bonobos. Interessei-me por indivíduos que se desviam dos papéis típicos. Fiquei interessado nessas perguntas adicionais. Cem anos atrás, um livro como este seria sobre masculino e feminino e como eles diferem. Agora tornou-se um livro sobre a diversidade.
Valor: A expressão “macho alfa” é abusada na linguagem corrente. Haveria um uso melhor?
De Waal: Se você procurar na Amazon, encontrará vários livros, todos na seção de negócios, sobre como ser um macho alfa. O que querem dizer é: como mostrar que você é o chefe, como se tornar o chefe, como atrair garotas. É uma imagem limitada e hipermasculina do macho alfa. Em primatologia, usamos o termo para o macho no topo da classificação hierárquica. Não dizemos que é um bom macho ou um macho mau ou um tirano. O mesmo vale para as fêmeas. No topo da hierarquia feminina tem a fêmea alfa. Em grupos de primatas, o macho e a fêmea alfa coexistem e geralmente trabalham juntos. O conceito de macho alfa não tem a ver com personalidade. Entre chimpanzés, quatro a cada cinco machos alfa são pessoas bacanas. Têm responsabilidade, ajudam os mais fracos, separam brigas, protegem as fêmeas contra machos agressivos. Às vezes tem, no cativeiro e na natureza, um macho alfa que é um tirano. Mas não costuma durar, porque os outros se juntam para derrubá-lo.
Valor: O sr. cita Golda Meir [primeira-ministra israelense de 1969 a 1974], que disse que “é bom que os homens façam as guerras, porque eles também as terminam”. O que isso nos diz sobre a agressividade masculina?
De Waal: Às vezes me perguntam sobre a educação neutra de gênero. Eu me oponho. Um motivo é que sabemos que os meninos, ao crescer, ficam mais fortes fisicamente que as meninas e são mais violentos. Em todas as sociedades, as taxas de homicídio são maiores para os homens que para as mulheres. Se sabemos que isso vai acontecer, é preciso criar os meninos de maneira diferente, para que sejam cidadãos responsáveis, capazes de manter sua força física sob controle e usá-la com propósitos construtivos em vez de abuso. Precisamos ensinar aos meninos que eles têm uma responsabilidade na vida, que é controlar suas emoções e sua agressividade.
Valor: O sr. afirma que “somos uma espécie hierárquica”. Quais são as chances dos projetos igualitários que tivemos ao longo da história?
De Waal: Nenhuma, eu diria. Se juntamos algumas crianças, a primeira coisa que fazem é disputar entre si para estabelecer a ordem hierárquica. Feito isso, elas podem ser bem pacíficas. Isso acontece com qualquer animal social. Há uma tendência forte de formar hierarquias. Às vezes se diz que os homens são mais hierárquicos que as mulheres. Uma psicóloga social colocou um grupo de homens em uma sala para decidir algo. Depois colocou cinco mulheres. Ela mediu a ordem hierárquica em cada grupo, observando quem interrompe quem. E descobriu que tanto os homens quanto as mulheres, dentro de uma hora, tinham alguma ordem hierárquica. Quanto aos projetos igualitários, seu objetivo costuma ser eliminar a exploração e os privilégios. É um bom objetivo, mas não elimina as hierarquias.