Uma preocupação de mais de meio século quanto à conservação do material bruto rodado por Orson Welles (1915-1985) no Brasil entre fevereiro e julho de 1942 finalmente foi atendida. No último dia 16, a pesquisadora americana Catherine L. Benamou anunciou por meio de uma nota no Twitter: “É meu prazer dividir as notícias muito boas de que a Paramount Pictures está escaneando o restante da filmagem em nitrato de ‘É Tudo Verdade’ (It’s All True) para que possa ser preservado pelo Arquivo de Cinema e TV da UCLA”.
O patrimônio cinematográfico brasileiro tem muito a celebrar. Pouco menos de metade do material filmado que agora tem sua estabilidade garantida foi rodado aqui. Segundo Benamou, autora do minucioso “It’s All True: Orson Welles’ Pan-American Odyssey” (University of California Press, 400 págs, 2007, US$ 34,95, inédito em português), são cerca de 23 mil metros de negativo em nitrato do episódio mexicano “My Friend Bonito”, codirigido por Norman Foster; 9,8 mil metros do capítulo carioca “Carnaval”; e 8,5 mil metros do negativo rodado no Ceará e no Rio para “Jangadeiros ou Quatro Homens numa Jangada”.
A trágica saga brasileira de Welles não é estranha a leitores e leitoras da coluna, batizada aliás em homenagem ao documentário inacabado que batiza nosso festival homônimo. Em plena montagem de seu segundo longa-metragem, “Soberba” (The Magnificent Ambersons, 1942), o diretor de “Cidadão Kane” (1940) foi enviado ao Brasil para realizar um filme dentro da política de boa vizinhança para a América Latina do esforço da Segunda Guerra (1939-1945) do governo Roosevelt, comandada pelo empresário Nelson Rockefeller (1908-1979).
Os mais de cinco meses da estadia de Welles no Brasil resultaram trágicos em vários sentidos. Um dos protagonistas originais do terceiro episódio, que reconstituiria com os próprios jangadeiros a heroica viagem de Fortaleza ao Rio de Janeiro na defesa de reivindicações trabalhistas, Manuel Olímpio Meira (1903-1942), conhecido como Jacaré, morreu afogado durante a reencenação para as câmeras de Welles da triunfal chegada.
A tragédia não paralisou o cineasta; ao contrário, o impulsionou no enfrentamento das exigências, sob turvas justificativas, de encerramento da produção e retorno aos EUA, feitos pelos estúdios RKO, a mesma produtora de seus dois primeiros filmes hollywoodianos. A mudança de guarda no topo da RKO custou caro a Welles: além de jamais ter acesso para montagem ao material bruto de “É Tudo Verdade”, também foi-lhe vetada a continuidade na finalização de “Soberba”, remontado e arremessado às telas, com novas cenas rodadas à sua revelia, incluindo um canhestro final feliz.
Nunca saberemos como seria o “It’s All True” de Welles, mas as agruras da produção, cenas preservadas pela UCLA e uma montagem-tentativa de “Jangadeiros” tornam obrigatório um documentário lançado há exatas três décadas, “It’s All True – Baseado em um Filme Inacabado de Orson Welles”, com direção de Bill Krohn e Myron Meisel e consultoria de Catherine Benamou, disponível em DVD da Versátil. Novas abordagens certamente seguirão o atual projeto de escaneamento pela Paramount. Vale registrar que o mais recente filme brasileiro inspirado pelo episódio cearense, “A Jangada de Welles” (2019-22), de Firmino Holanda e Petrus Cariry, acaba de ser indicado a melhor documentário pela 22 edição do prêmio anual da Academia Brasileira de Cinema
Uma versão menos mutilada de “Soberba”, entretanto, não parece assim tão utópica. Depois de quase três décadas de obsessão e de extensas filmagens por aqui no ano passado, o documentarista americano Josh Grossberg se prepara para lançar em 2024 “The Search for the Lost Print – The Making of Orson Welles’ ‘The Magnificent Ambersons’” (A Busca da Cópia Perdida – A Produção de “Soberba”, de Orson Welles). Como contei aqui em 2021, Grossberg investiga o que aconteceu com uma cópia de trabalho do filme enviada para o Rio em 1942.
Por sua vez, Brian Rose também finaliza, após quatro anos de trabalho, sua reconstrução de “Soberba” a partir de roteiro e anotações deixados pelo próprio Welles. Das 73 cenas do filme original, disse Rose ao semanário britânico “The Observer”, “apenas 13 foram deixadas intactas”.
Tomara tenha ele o mesmo sucesso que o craque Walter Murch ao realizar em 1998 uma versão “retocada” (Jonathan Rosenbaum) de “A Marca da Maldade” (1958) — outra produção de Hollywood da qual Welles foi afastado antes de terminar a edição. Duvido, porém, que a saga da decadência dos Ambersons na América profunda venha a me convencer, sob qualquer forma, como melhor cinema do que o eletrizante noir opondo os policiais Vargas (Charlton Heston) e Quinlan (o próprio Welles) na fronteira EUA-México. Nem a mais avançada tecnologia entrega milagres.