A primeira tentativa de insurreição armada na Rússia em três décadas começou com uma mensagem de áudio crepitante no aplicativo Telegram. Era o chefe militar Yevgeny Prigozhin, acusando a liderança do exército de “assassinar dezenas de milhares de soldados russos” como resultado de sua desastrada invasão da Ucrânia.
Prigozhin, chefe do grupo mercenário Wagner que está combatendo pela Rússia no leste da Ucrânia, vinha reclamando há meses dos líderes do exército regular. Mas desta vez foi diferente. Prigozhin e seus homens estavam prestes a iniciar uma marcha audaciosa sobre Moscou para “punir” o ministro da Defesa e o alto escalão do Exército.
“Os comandantes do Wagner chegaram a uma decisão. O mal que está sendo espalhado pela liderança militar do país precisa ser interrompido”, disse Prigozhin na curta mensagem de áudio gravada e emitida às 9h de sexta-feira (horário local).
O chefe militar, com a voz fervendo de raiva, disse que seus 25.000 homens começariam a sair de seus acampamentos no leste da Ucrânia em direção a Moscou. “Peço a todos que saiam do nosso caminho. Aqueles que tentarem nos deter consideraremos como uma ameaça e os destruiremos imediatamente. Isso não é um golpe militar. É uma marcha por justiça”, disse ele.
Autoridades atordoadas se esforçavam para responder. Na noite de sexta-feira, o serviço de segurança FSB anunciou que havia aberto uma investigação criminal contra Prigozhin por “organizar uma insurreição armada”.
Sergei Surovikin, um general de primeira linha do exército, gravou um vídeo conclamando os combatentes do Wagner a deporem suas armas. Um boletim noticioso de urgência foi transmitido pelo Canal 1, estatal, e o âncora tentou refutar as alegações de Prigozhin. O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, disse a jornalistas que o presidente Vladimir Putin havia sido informado.
A segurança foi reforçada em Moscou e durante a noite as pessoas compartilharam fotos de veículos militares circulando pelas ruas. Mas o ponto focal da insurreição rapidamente se tornou a cidade de Rostov-on-Don, no sul da Rússia, sede do comando sul do exército, que está encarregado da guerra na Ucrânia.
A grande cidade portuária fica a apenas duas horas de carro das áreas ocupadas do leste da Ucrânia, onde o Wagner tem suas bases. E nas primeiras horas da manhã de sábado, seus mercenários chegaram.
Tanques e veículos blindados do Wagner foram vistos em toda a cidade. Soldados fortemente armados saltaram deles e cercaram os principais edifícios: o quartel-general militar, o prédio do governo local, a sede do FSB.
Andrei, um blogueiro local, filmou as cenas enquanto atravessava a cidade para ir trabalhar. “Rostov. 9h. As pessoas estão em pânico, isso é certo. Todo mundo está do lado de fora tentando entender o que está acontecendo… Todo mundo está com medo”, disse ele no vídeo.
Ele filmou um bloqueio armado pela polícia. Atrás dele, homens do Wagner montavam guarda. Em outro cruzamento, ele encontrou homens do grupo mercenário sentados em uma caminhonete com uma metralhadora armada na carroceria. A situação parecia calma, mas o Wagner havia assumido o controle da cidade.
Prigozhin foi filmado no quartel-general do exército em Rostov, que suas forças haviam tomado, sentado para uma conversa sucinta com vice-ministro da Defesa da Rússia.
No resto do país, autoridades começaram a retirar bandeiras e outdoors do Wagner. Sua sede em São Petersburgo, um arranha-céu de vidro brilhante, foi cercado pela polícia. Moscou e a região de Moscou anunciaram que seu status de segurança estava sendo alterado para o nível de contraterrorismo, incluindo verificações aleatórias de identidades e um aumento da vigilância.
A programação da TV estatal não foi alterada, repleta de programas matinais leves de culinária e seriados, mas às 10h (horário de Moscou), ela foi interrompida por um pronunciamento de emergência de Putin.
“Traidores internos”, disse o presidente para a câmera, “permitiram que seus interesses pessoais os conduzissem à traição”. O Wagner havia organizado um motim. “Providências serão tomadas.”
Enquanto ele falava, um combio de veículos e combatentes do Wagner seguia de Rostov para o norte pela rodovia M4, que leva a Moscou. Tanques e outros veículos moviam-se em pequenas unidades.
Por volta do meio-dia do sábado, a coluna avançava pela região de Voronezh. O exército tentou interceptá-la. Surgiram relatos de confrontos. “Atividades operacionais e de combate” estão ocorrendo na região, alertou o governador de Voronezh. “A aviação da linha de frente está trabalhando ao longo da M4”, escreveu o canal do Telegram Rybar, administrado por um ex-secretário de imprensa do Ministério da Defesa. Um helicóptero foi abatido.
Testemunhas oculares dos vilarejos situados ao longo da rodovia na região de Voronezh compartilharam vídeos de fogo de artilharia e explosões à distância, com helicópteros de combate sobrevoando. Os russos não podiam acreditar no que estavam vendo: “bombardeio em Voronezh” é um meme que ganhou popularidade por significar um tiro no pé dado pela própria Rússia. Agora, o meme havia se tornado uma realidade. “Foi muito alto e assustador, os telhados das casas das pessoas estavam sendo destruídos e as janelas estilhaçadas. Pelo que entendi, os combatentes do Wagner foram atacados e estavam se protegendo”, disse uma mulher do vilarejo de Pavlovsk, na região de Voronezh.
Ela viu “duas colunas [de veículos do Wagner] com cerca de 3 quilômetros de comprimento cada”, dirigindo-se para a capital da região de Voronezh. “Eles estavam fortemente armados. Nunca vi equipamentos militares como aqueles em toda a minha vida”, acrescentou ela.
Outra mulher de um bairro afastado a leste da cidade de Voronezh compartilhou um vídeo de um helicóptero passando a poucos metros do telhado de sua casa. “Isso voou sobre a nossa casa”, escreveu ela. “Quando ficamos sabendo das notícias de Rostov, permanecemos calmos e continuamos fumando narguilé no quintal. Bem, não é mais uma situação de fumar narguilé.”
Por volta das 13h (horário local), quando um helicóptero sobrevoava um depósito de petróleo na margem esquerda do rio Voronezh, os moradores ouviram uma forte explosão seguida de chamas. Uma coluna alta de fumaça preta ondulando sobre o depósito podia ser vista do centro da cidade. Várias agências de noticias informaram que unidades do Wagner haviam “tomado o controle de instalações militares em Voronezh”, embora nenhum dos moradores tenha vista combatentes paramilitares ou veículos na cidade.
“Dei um giro pela cidade. Não havia nada de incomum, as ruas estavam livres. A única coisa que notei foi que havia filas nos postos de gasolina. As pessoas pensaram que ficaríamos sem gasolina porque o depósito de petróleo estava pegando fogo”, disse um homem de Voronezh.
Enquanto isso em Rostov, as forças do Wagner continuavam controlando a cidade. Alguns moradores tiraram selfies com os soldados, outros subiram em tanques. Alguns mercenários foram fotografados tomando café e comprando lanches para viagem.
As tentativas do exército de interceptar as forças do Wagner falharam e elas continuaram em direção ao norte. Às 16h chegaram à região de Lipetsk, a 400 quilômetros do extremo sul de Moscou.
As autoridades locais das regiões ao norte do comboio se apressaram para encontrar meios de evitar o avanço da coluna. Vias foram bloqueadas com ônibus escolares e caminhões. Cavadoras apareceram na rodovia e começaram a fazer buracos no asfalto. O rio Oka, que corta a região ao sul de Moscou, tornou-se a principal linha de defesa da capital. Pontes sobre ele foram bloqueadas pelo exército.
As turbulências causaram diversão na Ucrânia, onde piadas sobre a escassez de pipoca nos supermercados circularam as redes sociais. Os políticos se deleitaram com a demonstração de fraqueza russa.
“A tragicomédia dos últimos dias explica de forma eloquente para os líderes de outros países por que a Ucrânia não vê possibilidade em negociar com a Rússia hoje”, disse Mykhailo Podolyak, assessor do presidente ucraniano. “Os dias dessa gangue estão contados, a casa está sem dono.”
À medida que o comboio se aproximava de Moscou, aumentaram os temores dos russos de um confronto sangrento com o exército. Mas de repente, ao cair da noite, Prigozhin transmitiu uma nova mensagem para seus concidadãos.
“No espaço de 24 horas, chegamos a 200 quilômetros de Moscou”, disse ele em um novo áudio postado no Telegram. “Agora é o momento em que sangue poderá ser derramado”, acrescentou ele. Para evitar isso, “estamos fazendo nosso comboio retornar”.
Ao mesmo tempo, um comunicado foi emitido pelo gabinete do presidente de Belarus, um aliado próximo de Putin. Alexander Lukashenko vinha negociando com Prigozhin o dia todo, a pedido de Putin. Eles firmaram um acordo. O Wagner voltaria para suas bases no leste da Ucrânia e Prigozhin iria para Belarus.
Ao cair na noite em Rostov, moradores observaram os combatentes do Wagner se preparando para sair da cidade. As pessoas aplaudiram os mercenários; gritos de “força para o Wagner!” foram ouvidos. Prigozhin apareceu e recebeu as boas-vindas de um herói.
Na manhã deste domingo, o Wagner havia saído da Rússia, voltando para a Ucrânia ocupada. Poucos sinais restaram da insurreição. O prefeito de Rostov disse que as esteiras dos tanques da milícia danificaram 10 mil metros quadrados de asfaltos da cidade e que os reparos começariam imediatamente.