A estratégia do presidente russo, Vladimir Putin, para a Ucrânia tem base na grande suposição de que seu governo autocrático conseguiria, numa guerra longa e cara, vencer pelo cansaço as democracias ocidentais, cujos líderes são mais dependentes da opinião pública.
A insurreição do grupo mercenário Wagner mostra que um atoleiro militar também ameaça o líder forte de Moscou. O chefe do Wagner, Yevgeny Prigozhin, parece ter perdido sua briga com os comandantes militares russos. Mas sua marcha para Moscou no fim de semana expôs a fragilidade do sistema político de Putin desde que a invasão russa da Ucrânia se transformou em uma caminhada sangrenta, destruindo grande parte das forças armadas.
O próprio Putin invocou no sábado (24) o espectro de 1917, quando motins do exército durante a Primeira Guerra Mundial minaram o regime czarista e levaram à revolução.
“Intrigas, disputas e politicagem nas costas do exército e da nação se transformaram na baderna, na destruição do exército e no colapso do Estado”, disse ele em um pronunciamento pela televisão, prometendo não sofrer o destino do czar Nicolau II.
A autoridade de Putin foi abalada por sua incapacidade de esmagar o motim. O exército regular da Rússia, em sua maior parte, permaneceu à margem enquanto as tropas do Wagner se dirigiam para a capital. Um acordo negociado deixou os líderes da insurreição livres, embora enfrentando o exílio em Belarus.
Temor por novas revoltas armadas
O anúncio por Moscou nesta terça-feira (27) de que a Guarda Nacional, cujo principal trabalho é a segurança interna, receberá tanques e armamento pesado, reforçam o temor do Kremlin com possíveis novas revoltas armadas, mesmo que o Wagner tenha sido contido e desmantelado.
Em conversas anteriores com líderes ocidentais, Putin pouco se esforçou para esconder seu desprezo pelo que via como a instabilidade da liderança política nas democracias. Ele apostou que a Europa e os Estados Unidos seriam incapazes de arcar com os custos de uma guerra prolongada na Ucrânia.
Até agora, porém, o compromisso do Ocidente em ajudar Kiev se mostrou mais resiliente do que o Kremlin esperava. No último ano, os países europeus aceitaram o alto preço para abandonar sua dependência do gás natural russo, substituindo-o por outras fontes de energia. As eleições na região reforçaram o consenso para armar e financiar a Ucrânia e manter sanções contra a Rússia.
“Putin achou que poderia jogar um jogo longo, sem buscar um resultado antes da próxima eleição presidencial americana”, diz François Heisbourg, uma ex-autoridade francesa e consultor do centro de estudos Foundation for Strategic Research de Paris. “Até o último sábado, isso ainda estava em aberto. Agora, a probabilidade é de que a Rússia ceda antes do Ocidente.”
Outros alertam que a revolta do Wagner também poderá se mostrar uma exceção, e não a nova regra.
“Putin não se intimidou e nem perdeu o apoio de suas forças de segurança”, diz Richard Haass, chefe do Conselho de Relações Exteriores e uma ex-autoridade do governo americano. “Acho que Putin ainda está em posição de tentar ganhar tempo.”
Terminar a guerra poderá ser tão arriscado politicamente para o Kremlin quanto continuá-la. Enquanto a Ucrânia puder lutar, é improvável que ela aceite qualquer acordo para congelar a atual linha de frente e permitir à Rússia continuar ocupando áreas do leste e sul do país.
Os EUA e seus aliados europeus disseram que em algum momento terá de haver um acordo diplomático, mas eles não pressionarão Kiev a fazer concessões territoriais.
Algumas capitais europeias estão discutindo uma possível solução em que haveria uma retirada russa de grande parte da Ucrânia ocupada, exceto a Crimeia, enquanto a Ucrânia acabaria sendo levada para a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).
Os EUA e a Alemanha continuam céticos sobre a adesão da Ucrânia à Otan, enquanto a França se juntou ao Reino Unido, Polônia e outros em apoiá-la.
Mesmo o congelamento das atuais linhas de frente seria uma derrota estratégica para Moscou, que lançou sua invasão em grande escala no ano passado para restabelecer sua hegemonia política sobre a Ucrânia e impedir o país de se voltar para a Europa e o Ocidente – uma ambição imperial que a resistência determinada da Ucrânia tornou improvável.
“Fizemos da Ucrânia uma nação conhecida por todos no mundo inteiro”, disse Prigozhin em maio, lamentando o efeito contrário ao desejado da invasão russa. “Nós legitimamos a Ucrânia.”
Sistema de rivalidades mútuas
Há muito Putin tenta evitar qualquer desafio à sua autoridade dentro da elite do poder, criando um sistema de rivalidades mútuas entre os serviços de segurança e partes das forças armadas. O semiautômomo grupo Wagner foi, em parte, uma barreira contra uma rebelião do exército regular. Em vez disso, foi o Wagner que se tornou cada vez mais indisciplinado, com Prigozhin atacando a maneira como o Ministério da Defesa estava conduzindo a guerra e, mais recentemente, também a justificativa de Moscou para invadir a Ucrânia.
Segundo analistas, mesmo com Prigozhin, agora, afastado, outros membros da elite russa poderão promover mais tumultos se a guerra se arrastar, mesmo que ninguém saiba de onde virá a próxima contestação.
A luta interna entre os líderes militares russos poderá piorar o problema do moral baixo entre as tropas russas que estão lutando na Ucrânia. Até agora, contudo, as forças russas conseguiram conter a atual contraofensiva da Ucrânia.
Três semanas de ataques de sondagem das tropas ucranianas levaram a ganhos territoriais limitados e os ucranianos ainda não alcançaram as principais linhas de fortificação da Rússia. As unidades ucranianas, embora melhor equipadas do que antes, graças ao fornecimento de tanques e veículos blindados ocidentais, ainda carecem de poder aéreo e defesas contra os helicópteros de ataque russos e vêm lutando para avançar em áreas densamente minadas pelas forças de invasão russas.
“Uma grande questão é até que ponto esses acontecimentos na Rússia afetarão o campo de batalha”, diz Haass. O impacto militar da insurreição e neutralização do Wagner não está claro, mas é potencialmente positivo para a Ucrânia, afirma ele.
A determinação ucraniana de continuar a luta contra os invasores russos continua nas alturas – das tropas na linha de frente à opinião pública e o governo em Kiev. Mas a capacidade da Ucrânia de sustentar seu esforço de guerra depende do fluxo contínuo de armas e dinheiro do Ocidente.
Muitas autoridades europeias estão nervosas com a política interna dos EUA, onde Donald Trump vem incentivando a oposição de alguns eleitores republicanos à política do governo Biden de enviar bilhões de dólares em ajuda financeira e militar à Ucrânia.
Se Trump conseguir a nomeação do Partido Republicano para disputar a eleição presidencial de novembro de 2024, “então o jogo muda novamente. Podemos esperar o pior” para a Ucrânia, diz Heisbourg, expressando uma preocupação generalizada na Europa. “Mas Trump é uma coisa, o Congresso é outra.”
Uma redução abrupta da ajuda dos EUA é “um evento de baixa probabilidade”, segundo William Taylor, um ex-embaixador dos EUA na Ucrânia e pesquisador sênior do U.S. Institute of Peace, uma instituição federal de pesquisas de Washington.
“O notável é o quão estável o apoio dos EUA tem sido, numa base bipartidária”, diz Taylor, apontando para as posições firmemente pró-Kiev de republicanos importantes do Congresso.
Três quartos dos americanos acreditam que uma vitória ucraniana é importante para os EUA e 59% apoiam a ajuda militar, segundo aponta uma pesquisa divulgada no domingo pelo Ronald Reagan Institute de Washington.
Ao contrário de algumas percepções na Europa, Taylor diz não haver sinais de que o governo Biden queira que a Ucrânia decida ou reduza a guerra até o ano que vem, para que ela não seja um problema na campanha presidencial americana. “Se a Ucrânia for bem-sucedida, isso será uma grande vitória para Biden. Politicamente, ele está forte.”
Soldados disparam projétil durante a guerra na Ucrânia — Foto: LIBKOS/AP