Uso Medicinal da Cannabis: Brasil Avança na Regulamentação para Garantir Acesso e Justiça Social
O que muda com o plano interministerial e por que ele representa um marco histórico para a saúde pública no Brasil
O uso medicinal da cannabis está prestes a alcançar um novo patamar no Brasil. Após anos de debates, decisões judiciais e pressões da sociedade civil, o governo federal apresentou, por meio da Advocacia-Geral da União (AGU), um plano interministerial que visa regulamentar todas as etapas do processo — do cultivo à distribuição de medicamentos à base de cannabis. A proposta surge em resposta direta à decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que determinou, em novembro de 2024, a necessidade urgente de uma regulamentação clara e eficaz para o setor.
Essa movimentação sinaliza uma guinada na forma como o país encara o potencial terapêutico da planta e representa um marco para milhares de pacientes que dependem desses medicamentos para o tratamento de doenças crônicas e neurológicas. Com a nova normativa prevista para ser publicada até setembro, o Brasil pode finalmente entrar para o grupo de países que tratam o uso medicinal da cannabis como política de saúde pública e não mais como privilégio de quem pode arcar com altos custos ou acionar a Justiça.
Crescimento do uso medicinal da cannabis no Brasil
Desde 2015, quando foi autorizado o uso terapêutico da cannabis no Brasil — inicialmente apenas via importação — o número de pacientes que utilizam medicamentos à base de canabidiol (CBD) cresceu exponencialmente. Em 2019, a Anvisa avançou na regulamentação da comercialização nacional, mas ainda limitando o acesso a produtos com insumos estrangeiros. Essa exigência se traduziu em preços elevados, fazendo com que grande parte dos brasileiros dependesse de decisões judiciais para garantir seus tratamentos.
Segundo dados do próprio governo, mais de 670 mil brasileiros utilizam atualmente o canabidiol para tratar condições como:
-
Epilepsia refratária
-
Dor crônica
-
Esclerose múltipla
-
Transtornos neurológicos
-
Transtorno do espectro autista (TEA)
Esse contingente evidencia que o uso medicinal da cannabis não é uma exceção, mas uma realidade crescente que exige políticas públicas coerentes e inclusivas.
Os entraves jurídicos e econômicos que dificultam o acesso
Embora a legislação permita o uso medicinal da cannabis, na prática, o acesso aos medicamentos ainda esbarra em obstáculos financeiros e burocráticos. O alto custo dos produtos, decorrente da obrigatoriedade de importação dos insumos, cria um cenário de desigualdade e injustiça social. Famílias que não possuem recursos precisam recorrer ao Judiciário para garantir um direito básico: a saúde.
Desde 2022, o Ministério da Saúde foi obrigado a cumprir mais de 820 decisões judiciais determinando o fornecimento de medicamentos à base de cannabis. Essas ações judiciais, embora importantes, sobrecarregam o sistema público e demonstram a necessidade urgente de uma regulamentação federal que elimine a judicialização como caminho obrigatório.
A decisão do STJ como ponto de inflexão
O marco legal que impulsionou a proposta do plano interministerial veio da decisão do STJ, que, em novembro de 2024, estabeleceu um prazo de seis meses para que a Anvisa e o governo apresentassem uma proposta normativa para regulamentar o cultivo e a produção nacional de medicamentos à base de cannabis.
A ministra relatora apontou que a falta de regulação não apenas compromete o acesso dos pacientes às terapias, mas também impede o desenvolvimento da indústria nacional de cannabis medicinal. A ausência de um marco regulatório sólido deixa o Brasil dependente de produtos importados e trava o surgimento de um setor produtivo nacional com potencial de gerar emprego, renda e inovação.
O que prevê o plano do governo
O plano interministerial, coordenado pela AGU, contou com a participação ativa de órgãos estratégicos como:
-
Ministério da Saúde
-
Ministério da Justiça
-
Ministério da Agricultura
-
Ministério do Desenvolvimento Agrário
-
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)
A proposta prevê:
-
Regulamentação do cultivo de cannabis para fins medicinais
-
Definição de padrões sanitários e de qualidade para produção
-
Autorização de cooperativas e associações de pacientes para cultivo e produção
-
Redução da dependência de insumos estrangeiros
-
Incentivo à produção nacional com custos reduzidos
Essas medidas são consideradas cruciais para democratizar o acesso aos medicamentos e reduzir o impacto financeiro sobre o Sistema Único de Saúde (SUS), que hoje arca com parte dos tratamentos por meio de decisões judiciais.
O papel das associações e a luta pela regulamentação
Mesmo sem uma regulação federal consolidada, dezenas de associações de pacientes no Brasil já conseguiram autorizações judiciais para cultivar e produzir medicamentos à base de cannabis. Essas organizações desempenham papel essencial no fornecimento de produtos a custos acessíveis e também na conscientização da população.
Com a regulamentação oficial, espera-se que essas entidades passem a operar com segurança jurídica e apoio institucional, fortalecendo uma rede de produção e distribuição nacional que será essencial para o sucesso da política pública de uso medicinal da cannabis.
O impacto esperado: acesso, justiça e economia
A regulamentação do uso medicinal da cannabis não beneficiará apenas os pacientes. A criação de um mercado nacional legalizado tem potencial de gerar milhares de empregos diretos e indiretos, especialmente no setor agrícola, farmacêutico e de pesquisa científica.
Além disso, a produção local pode reduzir drasticamente os custos dos medicamentos, tornando-os acessíveis para a população de baixa renda e diminuindo a necessidade de ações judiciais. A medida também pode atrair investimentos nacionais e estrangeiros, impulsionando a economia e colocando o Brasil como referência no uso terapêutico da planta.
Desafios futuros: fiscalização e conscientização
Apesar dos avanços, a implementação da regulamentação exigirá fiscalização rigorosa para evitar desvios de finalidade e garantir a qualidade dos produtos. Também será necessário investir em campanhas de conscientização para combater o estigma associado ao uso medicinal da cannabis, muitas vezes confundido com uso recreativo ou ilegal.
O desafio não é apenas normativo, mas cultural. É preciso educar a sociedade sobre os benefícios científicos e terapêuticos da planta, embasados em estudos clínicos e experiências práticas bem-sucedidas no Brasil e no mundo.
O plano interministerial para regulamentar o uso medicinal da cannabis no Brasil é um passo histórico rumo à justiça social, ao fortalecimento da saúde pública e ao desenvolvimento econômico sustentável. Ele representa a resposta do Estado à urgência de pacientes, famílias e profissionais de saúde que há anos lutam por reconhecimento, dignidade e acesso a tratamentos eficazes.
Com a regulamentação prevista para os próximos meses, o país pode finalmente deixar para trás a dependência de importações, a judicialização massiva e o estigma cultural, abraçando uma política de saúde inclusiva, moderna e baseada em evidências científicas.