Datafolha revela petistas de direita e bolsonaristas de esquerda e expõe contradições ideológicas no eleitorado brasileiro
A mais recente pesquisa do Datafolha trouxe à tona um retrato revelador e, ao mesmo tempo, desconcertante do comportamento político do eleitor brasileiro. O levantamento identificou a existência expressiva de petistas de direita e bolsonaristas de esquerda, fenômeno que desafia as classificações tradicionais da política nacional e aprofunda o debate sobre identidade ideológica, voto personalista e a fragmentação do espectro político no país.
De acordo com os dados apurados, uma parcela significativa dos eleitores que se identificam como apoiadores do Partido dos Trabalhadores declara alinhamento ideológico com a direita. Ao mesmo tempo, uma fatia relevante dos bolsonaristas afirma se posicionar à esquerda. O resultado lança luz sobre um cenário no qual as fronteiras ideológicas se mostram cada vez mais difusas, marcadas menos por programas políticos e mais por lideranças, afetos e rejeições.
A pesquisa, realizada entre os dias 2 e 4 de dezembro, ouviu 2.002 pessoas com 16 anos ou mais em 113 municípios brasileiros, respeitando critérios estatísticos amplamente reconhecidos. Os números revelam não apenas uma curiosidade estatística, mas um fenômeno estrutural da política brasileira contemporânea: a desconexão crescente entre identidade partidária e autodeclaração ideológica.
Metodologia revela o descompasso ideológico
Para compreender a dimensão do fenômeno dos petistas de direita e bolsonaristas de esquerda, o Datafolha adotou uma metodologia em duas etapas. Na primeira, os entrevistados foram convidados a se posicionar em uma escala de um a cinco, na qual o número um representava maior proximidade com o ex-presidente Jair Bolsonaro e o cinco maior alinhamento ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Aqueles que se posicionaram entre um e dois foram classificados como bolsonaristas, enquanto os que escolheram quatro e cinco foram considerados petistas. Os entrevistados que optaram pelo número três foram enquadrados como neutros.
Na etapa seguinte, o instituto solicitou que os participantes indicassem sua posição ideológica em uma escala mais tradicional, que ia de um a sete, sendo um o máximo à esquerda e sete o máximo à direita. Essa combinação permitiu cruzar identidade política e autopercepção ideológica, evidenciando um desalinhamento expressivo entre as duas dimensões.
O resultado foi revelador. Entre os eleitores identificados como petistas, 34% afirmaram se posicionar à direita ou centro-direita. Outros 9% se declararam de centro, enquanto apenas 47% se reconheceram como de esquerda ou centro-esquerda. Em outras palavras, um terço dos apoiadores de Lula não se identifica com o campo ideológico historicamente associado ao partido.
O que explica os petistas de direita
O fenômeno dos petistas de direita e bolsonaristas de esquerda encontra explicações em múltiplas camadas. No caso dos petistas que se declaram à direita, especialistas apontam para a força do voto pragmático e do personalismo político. Muitos desses eleitores não se reconhecem nas pautas clássicas da esquerda, mas enxergam no presidente Lula uma liderança capaz de oferecer estabilidade econômica, políticas sociais eficazes ou mesmo previsibilidade institucional.
Há ainda o peso da memória política. Para uma parcela do eleitorado, a associação com o PT não está necessariamente ligada a uma visão ideológica estruturada, mas a experiências concretas vividas em governos anteriores, como aumento de renda, acesso ao consumo e programas de transferência social. Assim, o voto petista pode coexistir com valores conservadores em temas como costumes, segurança pública ou papel do Estado.
Esse desalinhamento também reflete a dificuldade histórica do eleitor brasileiro em se situar em categorias ideológicas clássicas. A distinção entre esquerda e direita, muitas vezes, é percebida de forma abstrata ou até confusa, sendo substituída por avaliações morais, emocionais ou circunstanciais.
Bolsonaristas de esquerda também desafiam o senso comum
Se o dado sobre petistas de direita já chama atenção, a existência de bolsonaristas de esquerda aprofunda ainda mais a complexidade do cenário. Segundo o Datafolha, 14% dos eleitores que se identificam como apoiadores de Jair Bolsonaro afirmaram ter alinhamento ideológico à esquerda ou centro-esquerda. Outros 8% se posicionaram no centro, enquanto 76% se declararam de direita ou centro-direita.
Embora o percentual seja menor do que o observado entre os petistas, ele não deixa de ser significativo. A presença de bolsonaristas de esquerda indica que o apoio ao ex-presidente também ultrapassou barreiras ideológicas tradicionais, mobilizando eleitores que, em tese, estariam distantes do campo conservador.
Nesse grupo, analistas identificam motivações variadas. Parte desses eleitores pode associar Bolsonaro a uma postura antissistema, de enfrentamento às elites políticas e econômicas, discurso que, paradoxalmente, também aparece em setores da esquerda mais radical. Outros podem ter sido atraídos por pautas específicas, como críticas à corrupção, rejeição a partidos tradicionais ou defesa de uma retórica de mudança, independentemente do conteúdo ideológico.
Personalismo e enfraquecimento das ideologias
O levantamento do Datafolha reforça a tese de que a política brasileira vive um processo acelerado de personalização. A identificação com líderes supera, em muitos casos, a adesão a projetos ideológicos consistentes. Nesse contexto, a existência de petistas de direita e bolsonaristas de esquerda não é uma anomalia, mas um sintoma de um sistema político em que partidos perderam centralidade programática.
Esse cenário é alimentado por diversos fatores. A fragmentação do sistema partidário, a baixa educação política, a comunicação baseada em redes sociais e a polarização emocional contribuem para que o debate público se organize em torno de figuras e narrativas simplificadas, em vez de propostas estruturadas.
Além disso, o próprio conceito de esquerda e direita passou por ressignificações no Brasil. Temas como economia, costumes, meio ambiente e políticas sociais nem sempre se alinham de forma coerente dentro dos rótulos tradicionais. Um eleitor pode defender políticas sociais amplas e, ao mesmo tempo, adotar posições conservadoras em pautas morais, criando combinações que escapam às classificações convencionais.
Impactos eleitorais e estratégicos
A constatação de que há petistas de direita e bolsonaristas de esquerda tem implicações diretas para as estratégias eleitorais futuras. Partidos e candidatos passam a lidar com um eleitorado menos previsível, cuja fidelidade ideológica é frágil e altamente suscetível a contextos econômicos, crises institucionais e desempenho de governos.
Para o PT, os dados indicam a necessidade de dialogar com um público heterogêneo, que não necessariamente se identifica com discursos clássicos da esquerda. Já para o campo bolsonarista, o desafio é manter coesa uma base que, embora majoritariamente à direita, abriga segmentos com visões divergentes sobre o papel do Estado e políticas públicas.
O resultado também sugere que disputas eleitorais futuras tendem a ser decididas menos por alinhamento ideológico puro e mais pela capacidade de mobilizar sentimentos, percepções de competência e narrativas de confiança ou rejeição.
Um retrato fiel da complexidade brasileira
Mais do que um dado curioso, a pesquisa do Datafolha oferece um retrato fiel da complexidade do eleitorado brasileiro. A presença de petistas de direita e bolsonaristas de esquerda evidencia que o comportamento político no país não pode ser compreendido apenas por categorias importadas de outros contextos.
O Brasil construiu uma cultura política marcada por contradições, pragmatismo e forte personalismo. Nesse ambiente, o voto é frequentemente uma escolha situacional, moldada por experiências concretas e avaliações subjetivas, e não apenas por adesão a ideologias abstratas.
Ao revelar esse cenário, o levantamento contribui para um debate mais honesto sobre os limites da polarização simplificada e a necessidade de compreender o eleitor brasileiro em sua pluralidade. Entender essas nuances será fundamental para quem pretende disputar poder, formular políticas públicas ou simplesmente interpretar os rumos da democracia no país.






