STJ avalia ampliar direito de cancelamento de passagens aéreas compradas pela internet
A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) iniciou a análise de um tema que pode transformar a relação entre consumidores e companhias aéreas: a possibilidade de ampliar o prazo de cancelamento de passagens aéreas adquiridas pela internet. O julgamento, suspenso na semana passada, discute se o consumidor que compra uma passagem online deve ter direito ao prazo de arrependimento de sete dias previsto no Código de Defesa do Consumidor (CDC), com restituição integral do valor pago, ou se deve prevalecer a regra específica do setor, estabelecida pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), que limita o cancelamento gratuito às primeiras 24 horas após a compra.
A controvérsia coloca em conflito normas de naturezas distintas — o CDC, aplicável a todas as relações de consumo, e a regulamentação setorial da Anac, voltada para o equilíbrio operacional das companhias aéreas. O desfecho poderá redefinir procedimentos internos das empresas, alterar práticas comerciais e influenciar milhões de consumidores que recorrem diariamente à compra digital de passagens.
O relator do caso, ministro Marco Buzzi, votou para que prevaleça o prazo de sete dias, considerando que compras feitas pela internet configuram contratação fora do estabelecimento comercial. No entanto, o julgamento foi interrompido por pedido de vista do ministro Antonio Carlos Ferreira, sem data definida para retomada.
Enquanto o processo aguarda a próxima etapa, especialistas e representantes do setor acompanham de perto os desdobramentos. O entendimento a ser firmado pelo STJ poderá repercutir em toda a aviação civil brasileira, ampliando direitos dos consumidores ou reforçando a autonomia regulatória da Anac.
Prazo de arrependimento: CDC x Anac no centro do debate
O ponto central da discussão jurídica é determinar qual regra deve prevalecer no cancelamento de passagens aéreas compradas online. O CDC garante ao consumidor o direito de desistir da compra dentro de sete dias, com devolução total dos valores pagos, quando a contratação ocorre fora do estabelecimento comercial — o que inclui negociações pela internet.
Por outro lado, a Anac, no âmbito de sua competência regulatória, estabeleceu regra distinta. Segundo a resolução em vigor, o passageiro pode cancelar a passagem sem custos apenas nas primeiras 24 horas após a compra, desde que o cancelamento ocorra com no mínimo sete dias de antecedência em relação ao voo.
Duas visões distintas se contrapõem:
• CDC: prevalência do direito de arrependimento por sete dias.
• Anac: limitação de cancelamento gratuito a 24 horas após a compra.
A posição adotada pelo STJ definirá se uma norma específica do setor aéreo pode restringir um direito previsto em lei federal.
O voto do relator e os argumentos apresentados
Em seu voto, o ministro Marco Buzzi defendeu a prevalência do prazo de sete dias do CDC. Ele argumentou que o direito de arrependimento é um mecanismo essencial de proteção ao consumidor, especialmente em contratações realizadas à distância, sem contato físico ou atendimento presencial.
O relator destacou ainda que a resolução da Anac possui hierarquia inferior ao CDC. Por ser uma norma administrativa, não poderia se sobrepor a um direito legalmente estabelecido, salvo quando houvesse justificativas técnicas amplamente reconhecidas — o que, segundo o ministro, não se verificaria no caso analisado.
A posição do relator tende a fortalecer a proteção ao consumidor, garantindo maior flexibilidade para cancelar passagens adquiridas digitalmente. Caso seu entendimento prevaleça, consumidores poderão desfazer a compra sem ônus durante a primeira semana após o pagamento, independentemente da antecedência do voo.
Pedido de vista adia definição e prolonga debate
O julgamento foi suspenso por pedido de vista do ministro Antonio Carlos Ferreira. O ato interrompe o andamento do caso, que não tem data prevista para voltar à pauta. A decisão mantém o ambiente de expectativa entre consumidores, operadores do direito e o setor aéreo.
A suspensão prolonga o período de incerteza, já que decisões que envolvem direitos do consumidor e regulamentações específicas costumam repercutir com intensidade no mercado. Até que o julgamento seja concluído, continua valendo a regra da Anac: cancelamento gratuito apenas dentro de 24 horas após a compra.
A visão dos especialistas: tendência pró-consumidor ganha força
Segundo o advogado Gustavo Gomes, especialista em direito do consumidor, o caso acompanha uma tendência jurídica mais ampla, observada em diferentes setores regulados. Ainda que a aviação civil tenha regras próprias, o CDC permanece como baliza principal das relações entre consumidores e empresas.
Para ele, a discussão não envolve apenas o setor aéreo, mas o entendimento sobre a prevalência de normas constitucionais e legais quando confrontadas com regulamentações administrativas. O advogado argumenta que o direito de arrependimento é automático e não admite condicionantes que contrariem o CDC.
Esse ponto é sensível porque o setor aéreo opera com margens reduzidas, estrutura complexa e necessidade de planejamento rigoroso na ocupação dos assentos. Ajustes regulatórios podem exigir mudanças operacionais e aumento de custos para as empresas.
Ainda assim, especialistas avaliam que a posição pró-consumidor costuma prevalecer em decisões judiciais de abrangência nacional, especialmente quando se trata de compras realizadas em ambiente digital.
Impactos para consumidores: flexibilidade e segurança jurídica
Se o STJ decidir pela ampliação do prazo de cancelamento de passagens aéreas para sete dias, a mudança terá impacto direto nas relações de consumo. Os principais reflexos são:
1. Maior segurança nas compras online
Com o prazo mais amplo, consumidores poderão rever a compra com calma, ajustando itinerários, datas e valores sem receio de perder dinheiro.
2. Redução de prejuízos por compras impulsivas
Promoções relâmpago e mensagens de urgência são comuns no setor aéreo. Um prazo maior reduz riscos de decisões precipitadas.
3. Padronização das regras de consumo
Ter um prazo único e alinhado ao CDC evita confusão entre diferentes canais de compra e modalidades de bilhetes.
4. Maior proteção a grupos vulneráveis
Idosos, pessoas com baixa familiaridade tecnológica e consumidores que enfrentam dificuldades para compreender regras de tarifas seriam beneficiados.
A ampliação do direito ao arrependimento, entretanto, também pode gerar novos desafios, como aumento de cancelamentos de última hora ou necessidade de ajustes mais rígidos nas políticas de reembolso das companhias aéreas.
Impactos para as companhias aéreas: ajustes, custos e previsibilidade
O setor aéreo é historicamente sensível a qualquer mudança regulatória. Caso o prazo de sete dias seja confirmado, as companhias precisarão revisar políticas internas, especialmente no tocante a:
1. Gestão de assentos
A taxa de ocupação é um dos indicadores mais relevantes para o setor. Um prazo mais extenso de cancelamento pode aumentar o índice de devolução de bilhetes e impactar a previsibilidade dos voos.
2. Política tarifária
Empresas poderão rever modelos de precificação, diferenciação de tarifas e condições de compra para compensar o risco maior de cancelamentos.
3. Rotinas administrativas
O volume de solicitações de reembolso e ajustes de itinerário pode aumentar, exigindo reforço em equipes de atendimento e sistemas internos.
4. Ajustes contratuais e regulatórios
Companhias que operam sob regulações específicas podem buscar revisões junto à Anac ou ajustes operacionais para conciliar o direito de arrependimento com a lógica operacional da malha aérea.
Ainda que o impacto não deva ser uniforme entre as empresas, especialistas apontam que o setor aéreo, já amplamente regulado, precisará adaptar-se a novas exigências para garantir conformidade com uma eventual decisão judicial.
CDC x Anac: quem deve prevalecer?
A discussão sobre qual norma deve ser aplicada extrapola o setor aéreo e entra no campo da hierarquia normativa. O CDC, por ser uma lei federal, ocupa posição superior às resoluções de agências reguladoras. No entanto, o setor aéreo possui especificidades operacionais reconhecidas pela legislação.
O STJ terá de decidir se a regra da Anac pode ser considerada complementar ou se ela restringe indevidamente um direito já garantido por lei. Essa decisão pode estabelecer precedente para outros segmentos regulados, como telecomunicações, energia e serviços financeiros.
Possíveis cenários após a decisão
A depender do entendimento que prevalecer no STJ, diferentes cenários podem se desenhar:
Cenário 1 — Prevalência do CDC:
O prazo de sete dias para cancelamento de passagens aéreas passa a ser regra geral para todas as compras online.
Cenário 2 — Prevalência da Anac:
A regra das 24 horas continua valendo, reforçando a autonomia regulatória do setor.
Cenário 3 — Solução híbrida:
O STJ pode modular a decisão, permitindo exceções em casos específicos ou estabelecendo critérios complementares.
Enquanto a definição não ocorre, o debate segue em alta e reacende discussões sobre direitos do consumidor, transparência contratual e políticas de proteção em ambientes digitais.
A decisão do STJ deve estabelecer um marco no direito do consumidor e no setor de aviação civil. A análise sobre o prazo de cancelamento de passagens aéreas reflete a necessidade de conciliar a proteção ao usuário e a viabilidade operacional das companhias. Com o país cada vez mais conectado digitalmente, normas claras, acessíveis e equilibradas serão fundamentais para garantir confiança, previsibilidade e transparência nas relações de consumo.






